Título: Da água para o vinho
Autor: Alexandre Werneck
Fonte: Jornal do Brasil, 16/11/2004, Caderno B, p. B-1

A cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural, condecoração anual do Ministério da Cultura aos que contribuem com a cultura no país, no Palácio do Planalto, semana passada, mostrou algo que já se sabia no mundo cultural brasileiro: José Celso Martinez Corrêa tem uma posição política de centro. De centro das atenções. O diretor teatral paulista de 67 anos, embora fosse apenas um dos 40 agraciados com a honraria (que ele recebeu como representante do Teatro Oficina, que dirige, em São Paulo, e foi inaugurado em 1961), e mesmo estando em meio a nomes como Pelé, o ator Paulo José e o quadrinhista e animador Maurício de Souza, passou rapidamente para o papel de protagonista. Primeiro, por conta da expectativa criada em torno de sua presença em evento reunindo classe artística e governo. A tensão existia desde um ato de campanha do então candidato a presidente Luiz Inácio da Silva, no Rio, em 2002. Naquele momento, a classe cultural manifestava seu apoio a Lula em uma churrascaria carioca quando Zé Celso jogou um balde de água fria no clima de ''já ganhou'', fazendo críticas e revelando desconfiança em relação ao PT. Mesmo que ele já tenha dito publicamente que a desconfiança passou, a personalidade tão enigmática quando espetacular do artista que em 1968 agitou o meio teatral com suas ontológicas montagens de Roda-viva e Galileu Galilei, parece justificar a preocupação do ministro da Cultura, Gilberto Gil, do embaixador Arnaldo Carrilho (ex-presidente da Riofilme, agraciado e convidado a representar os homenageados), e do presidente Lula. Os três dirigiram (in)diretas a ele em seus discursos, talvez com receio de que, ao encontrá-los, ele ligasse a metralhadora giratória novamente.

E Zé Celso, que parece adorar à distância a mise-en-scène do poder, vestiu a carapuça e interpretou o papel. Enquanto aguardava sua vez, observava sorridente. Quando a cantora pernambucana Lia de Itamaracá foi chamada para receber a Ordem, ele puxou um coro de Ciranda de Lia, a música que a consagrou. Na sua vez, foi para o palco sob uma ovação geral, com Arizinho, menino sem-teto paulista descoberto ator em um projeto do Oficina. Ao receber a honraria, abraçou Lula e Gil apertado, como se abraçam velhos amigos. Com a condecoração na mão, ergueu os braços em um gesto, digamos, cênico, e deixou a caixa com a medalha de honra ao mérito cair ao chão, o que produziu uma risada generalizada da platéia.

- Aquilo foi espontâneo, aconteceu sem querer - explicou depois Zé Celso, festivo, sentado a uma mesa do jantar em homenagem aos agraciados, em um hotel de Brasília.

No jantar, o tom era o de festa dionisíaca, bem ao gosto do diretor, que em 1996 provocou polêmica com sua montagem de Bacantes: depois de um karaokê, improvisado ao piano com o compositor João Donato (também condecorado) e puxado pelo ministro Gil, surgiu uma grande roda, ao som da Ciranda de Lia, desta vez entoada pela própria. Na fila de mãos dadas, entrou de Maurício de Souza ao senador Eduardo Suplicy (convidado do evento), terminando de quebrar o protocolo que já havia estado por um fio mais cedo, por conta do jeitão clown do diretor.

- O PT está levando esse ritual republicano muito a sério. Estão levando ao extremo essa coisa de cerimonial. O próprio Gil está fazendo um esforço transumano para assumir esse ritual e fazer tudo caber em um certo limite - diz, justificando sua irreverência ao receber a honraria.

O clima de celebração de Baco deu liberdade ao diretor para mudar da água para o vinho sua visão entre o encontro atual e o de 2002 e para mais uma vez assumir uma posição contra-corrente, diferente, por exemplo, das de muitos dos envolvidos no episódio da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav): ele acha que a área cultural do governo Lula vai muito bem. Segundo ele, porque seu puxão de orelha iluminou a cabeça de Lula.

- Eu disse a ele: o ministro da Cultura tem que ser muito mais forte que o presidente do Banco Central. E hoje é exatamente isso que está acontecendo. Gil e o Celso Amorim (das Relações Exteriores) são os dois grandes ministros deste governo. De alguma forma, depois daquele dia o Lula teve uma intuição para o nome dele.

Para o diretor, Gil é o grande motivo de ter ido tão alegre à homenagem:

- A Ordem do Mérito foi uma festa de mistura, com gente como eu, o pessoal dos quilombos (O candomblé do Açude, descendentes de quilombolas da Serra do Cipó, em Minas Gerais), os índios (o povo Panará, tribo do Mato Grosso e Pará), o (cineasta) Osualdo Candeias, me deixou felicíssimo, porque finalmente o ocupante do Ministério da Cultura tem uma compreensão completa e complexa da cultura brasileira. Ele retoma, em certo sentido, a linha do Gustavo Capanema. Dizem por aí que ele não tem projeto. Pois eu digo que ele é que tem. Ele próprio é a realização de um projeto. É um ministro oswaldiano, em pleno cinqüentenário de Oswald de Andrade.

A alusão ao ícone modernista autor de O rei da vela, encenada, com grande repercussão, por ele, em 1967, situa bem a mudança de posição do diretor. Em 2002, havia um conflito entre ele e o PT, envolvendo a manutenção do Oficina, graças ao projeto do empresário Sílvio Santos, dono da rede de televisão SBT, de construir um shopping no local, no bairro do Bexiga. A falta de apoio da prefeitura deixou Zé Celso revoltado com Marta Suplicy e seu partido. Hoje, o Oficina acaba de anunciar a construção do Teatro de Estádio, um espaço, segundo o diretor, como Oswald, seu grande inspirador, idealizava. A construção será feita depois de 25 anos de briga com o empresário, e justamente com ajuda financeira dele. E a primeira peça encenada, o próximo projeto de Zé Celso, será O homem e o cavalo, de Oswald.

- Em 2002, eu detonava a Marta e o Sílvio Santos. Mas como desdramatizou a situação, não detono mais. Não preciso mais ter animosidade com a Marta. Vou votar nela para governadora. Prefiro votar no PT, que tem quadros competentes, a votar no PSDB, um partido que, culturalmente, está muito mais atrasado.

Mas ele avisa que isso não faz dele um cabo eleitoral do PT, muito ao contrário:

- Do PT não. Do Gil, do Celso Amorim e da política de revolução cultural deles.

Revolução cultural?

- Quando eu vou ao Senado, a convite do Suplicy, pego o microfone e falo: ''Merda!'', alguns senadores ficam escandalizados. Mas quando explico que ''merda'' é uma saudação do teatro, que estava desejando um bom trabalho para eles, eles entendem. Isso é uma revolução cultural - explica ele, que durante o regime militar foi preso e torturado e passou quatro anos no exílio.

Segundo Zé Celso, esse espírito revolucionário marcou a cerimônia no Planalto:

- Nunca vi uma entrega de condecorações que não fosse chapa-branca. Esta, com tantas representações não-unânimes, não foi.