Valor Econômico, v. 20, n. 4981, 15/04/2020. Especial, p. A12

Retomada será lenta e juro tem espaço para cair a 1%, diz Kawall

Entrevista: Carlos Kawall, diretor de pesquisa econômica do ASA Bank e  Ex-secretário do Tesouro


A retomada da economia brasileira após a crise provocada pela pandemia de coronavírus será lenta e o país deve sair do episódio com crescimento potencial ainda mais baixo, avalia Carlos Kawall, diretor de pesquisa econômica do ASA Bank. Segundo Kawall - um dos primeiros a prever tombo mais forte para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2020 -, o tamanho da retração depende não só da extensão das medidas de confinamento, cujo período mais restritivo deve durar até o fim de abril, mas também de como serão as decisões de consumo e investimento após a normalização da atividade. E, tudo indica, consumidores e empresas estarão mais cautelosos.

“Fico torcendo para estar errado, mas tem risco de a queda ser maior. Não muito, mas tem”, disse Kawall, ex-secretário do Tesouro Nacional, em entrevista ao Valor. Em 19 de março, quando projeções de bancos e consultorias começavam a flertar com o terreno negativo, o ASA revisou sua estimativa para o desempenho do PIB neste ano de zero a recuo de 3%. No começo de abril, o banco fundado por Alberto Safra reviu novamente seu número, para -5%. Antes considerada muito pessimista, essa é a mesma expectativa do Banco Mundial agora, enquanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê retração um pouco maior, de 5,3%.

Para Kawall, é difícil que a retomada seja em formato de “V”, porque a alta do desemprego será relevante - o banco estima que a taxa vai atingir um pico de 14,5% no segundo trimestre. Em 2019, a desocupação ficou em 11,9%. E os efeitos negativos do coronavírus sobre a economia se darão também no longo prazo, já que o investimento e a produtividade são afetados.

No curto prazo, o hiato do produto - uma medida da ociosidade da economia - deve aumentar consideravelmente, diz Kawall. Isso tende a seguir derrubando as expectativas de inflação. Como o juro neutro (que permite o crescimento sem pressões inflacionárias) também deve diminuir, existe espaço para que a Selic caia a 1% ao ano, prevê o economista. Hoje, a taxa está em 3,75%.

Os juros baixos ajudariam a “digerir” a alta forte do endividamento público, que deve ser temporária. “Há uma certa consciência das lideranças do Congresso e também do Judiciário”, acredita o ex-secretário, percepção que se manteve após a aprovação da proposta de socorro financeiro a Estados e municípios na Câmara. “O aprovado foi muito diferente da proposta inicial, embora não ideal.” A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O ASA foi um dos primeiros a prever contração forte para a economia brasileira este ano, de 3%, e agora espera redução de 5%. Existe limite inferior para a queda do PIB este ano?

Carlos Kawall: Fico torcendo para estar errado, mas tem risco de a queda ser maior. Não muito maior, mas tem. Isso depende da extensão do “lockdown” [confinamento] e dos efeitos secundários dele. Porque você começa a ter desemprego, perda de renda, e quem fica empregado começa a aumentar a poupança. Em fevereiro muita gente achava que esse negócio ficaria contido na China, e veja como em menos de dois meses isso mudou brutalmente. Nossa projeção para o PIB brasileiro saiu de zero para queda de 3% e muita gente não entendeu, e agora fomos para -5%, que é a opinião do Banco Mundial e é parecida à do FMI. Organismos mais conservadores estão com projeções mais pessimistas, enquanto bancos de investimento estão com -2%, -3%. Normalmente é o contrário.

Valor: Muitos economistas contam com normalização da economia a partir de meados de maio em seus cenários-base. Essa não seria uma suposição otimista?

Kawall: No nosso cenário, o “lockdown” dura até o fim deste mês e a partir daí há algum tipo de abrandamento. Mas isso não quer dizer uma normalização completa e, nesse sentido, há incerteza em relação ao ritmo de transição entre um estado e outro. O problema é como consumidores vão reagir a uma eventual normalização. Vão recompor o patamar de gasto anterior e recuperar o que deixaram de gastar? É consenso que não. Podemos ter recuperação na indústria, mas o serviço que deixa de ser consumido em alguns casos é perdido. Como o próprio [presidente do Banco Central, Roberto] Campos Neto falou, “eu não vou cortar o cabelo duas vezes”. O desemprego vai aumentar: estimamos um pico de 14,5% no segundo trimestre. Então a dúvida não é só sobre o tamanho do “lockdown”, mas sobre como decisões de consumo e investimento serão afetadas. Acho que de forma mais perene, porque é uma crise global, ninguém está escapando. Isso vai pegar todo mundo. A boa notícia para nós, que exportamos commodities, é que quem está saindo disso antes é a China. A parte de agropecuária e minério de ferro é onde as notícias são boas.

Valor: Somando todos esses fatores, existem condições para que a economia tenha uma retomada mais rápida, em formato de “V”, passado o choque?

Kawall: Não. Já havia desconforto com o ritmo de crescimento do quarto trimestre [de 2019]. Depois acabaram saindo alguns dados até mais positivos referentes a janeiro a fevereiro, mas que não mostravam um primeiro trimestre exuberante, e como o efeito da covid-19 vai pegar a partir de março, o primeiro trimestre vai ser levemente negativo. O segundo trimestre cai muito e depois recupera de forma mais lenta no segundo semestre, mas achamos que a recuperação é bem mais no formato de “U”. Vemos o PIB crescendo 2,5% em 2021. A economia só vai recuperar o pico do fim do ano de 2019 no início de 2023.

Valor: O PIB potencial [ritmo de crescimento que não acelera a inflação], já baixo, será afetado por essa crise?

Kawall: Sim. No curto prazo, a crise tem efeito de queda sobre o investimento e a produtividade. Não sei para você, mas para mim o home office é extremamente improdutivo, e estamos levando isso em conta. Não tem as condições ideais de tecnologia, não tem interação com as outras pessoas no ambiente de trabalho. E curiosamente, os Estados mais afetados pelo coronavírus são São Paulo, Rio, Ceará e Amazonas.

Não sabemos a lógica da doença, mas se São Paulo e Rio são mais afetados, a reação será mais lenta e o PIB potencial, que a gente achava que era 1%, 1,5%, será afetado. Mas no curto prazo o hiato do produto vai ficar gigantescamente aberto. Só será fechado em 2023, e o do mercado de trabalho, em 2024. Do ponto de vista de inflação, não teremos o menor problema ao menos nos próximos três anos.

Valor: Dado o cenário de inflação baixa e fraqueza da atividade, a atuação do Banco Central tem sido cautelosa demais?

Kawall: O BC fez um excelente trabalho na parte de capital e liquidez. Vemos isso positivamente, não teremos problema de restrição de crédito. Os bancos estão sólidos. Com relação ao mercado de câmbio, a opção foi não fazer um grande programa. Cheguei a defender isso, mas hoje diria que o BC tem lá as suas razões e tem sido mais eficiente nesse período. Recentemente intensificou sua atuação e a nossa taxa de câmbio está mais em linha com o tem acontecido com outros emergentes. Já na questão da Selic é onde existe dúvida grande. As expectativas de inflação estão caindo muito rapidamente e vão continuar a cair. Nós temos 1,7% de IPCA neste ano e 2,9% em 2021. E por que isso me preocupa? Porque achamos que o juro neutro também vai cair, devido ao menor crescimento global e do Brasil, do PIB potencial, da produtividade. Trabalhávamos com um número de 1,7% para o juro de equilíbrio no fim de 2019 e achamos que vai caminhar para 1%, talvez zero, a despeito da expansão fiscal grande neste ano. Com inflação e juro neutro caindo, a política monetária vai ficando menos estimulativa. Nesse contexto, a gente saiu com uma previsão ousada de a taxa Selic ir a 1%. Isso não deve acontecer em movimentos grandes de cortes significativos, mas ao longo do tempo a realidade vai mostrar que o grau da contração é muito grande e o risco é ter desancoragem da taxa de inflação.

Valor: Qual seria o efeito de um corte adicional de juros em uma economia que já vinha parada mesmo antes dessa crise?

Kawall: No Brasil grande parte do endividamento das empresas é em CDI, então tem um alívio imediato que as beneficia. O BC chamou atenção a problemas ligados a condições financeiras. O Copom de março foi no pior momento de alta de dólar, de CDS [uma medida de risco-país] e curva de juros, e por isso o BC optou por uma saída mais prudente. Mas ao longo do tempo, em circunstâncias normais, a queda dos juros é o que ajuda a melhorar as condições financeiras.

Valor: O ASA prevê que o déficit primário será de 7,7% do PIB neste ano. A possibilidade de piora fiscal além de 2020 preocupa?

Kawall: Sim. Na semana passada, apareceu uma versão do projeto de auxílio aos Estados que era um plano de “desajuste”. Ele elevava enormemente a capacidade de endividamento, o que provavelmente acabaria sendo estendido a municípios. Felizmente a versão aprovada foi diferente dessa, embora não a ideal. Apesar do valor expressivo [R$ 89,6 bilhões], ficou limitado no tempo a algo emergencial. E é desse tipo de coisa que depende o futuro. Se a gente encarar o momento como alta de um patamar de dívida de 76,5% do PIB para um em torno de 87% a  e todo mundo enxergar que isso foi um movimento global de resposta à pandemia seguido de um período de juros bastante baixos, que vão ajudar a digerir esse endividamento, é uma coisa. Agora se a gente toma medidas irresponsáveis, o patamar será mais alto e juro não será baixo. Aí vamos entrar de novo naquela espiral de aumento de dívida que causou a nossa maior recessão da história. Aí não teremos problema só em 2020. Aí será 2021, 2022. Esse filme a gente já viveu.

Valor: A probabilidade desse cenário mais dramático, com piora fiscal além de 2020, subiu?

Kawall: Acho que não. Há uma certa consciência das lideranças do Congresso e também do Judiciário. Um evento importante anterior a essa confusão foi o aumento do BPC [Benefício de Prestação Continuada]. Ele foi rapidamente bloqueado pelo TCU, que suspendeu a eficácia da lei, e posteriormente o Supremo Tribunal Federal considerou aquela lei inconstitucional. A ação dos órgãos de controle e do próprio Judiciário tem sido importante em evitar esse tipo de farra fiscal, que sempre está latente. Infelizmente houve um escorregão desse projeto de lei  do Plano Mansueto, mas aparentemente agora estamos voltando aos trilhos. Vamos passar por esse primeiro round de medidas de resposta à covid-19 com expressão grande. Inclusive a reação do Brasil está acima da média dos emergentes. E esse espaço só existe porque estamos aí há quatro anos fazendo ajuste fiscal estrutural. Se jogarmos isso no lixo e voltarmos à gastança, aí vai dar tudo errado de novo.

Valor: Como alguém que já foi do governo, qual sua avaliação sobre as medidas de combate à crise anunciadas até agora e sobre as críticas a respeito da demora para que elas cheguem a empresas e trabalhadores?

Kawall: A resposta inicial demorou um pouco. Mas a partir do momento em que eles entraram e declarou-se a emergência fiscal, as medidas passaram a vir de maneira mais veloz. Poderia ter sido uma, duas semanas mais rápido, mas o foco me parece adequado. São medidas para fazer a renda chegar na mão de quem precisa e evitar que empresas sejam financeiramente asfixiadas, e a maneira mais rápida de fazer isso é por meio de diferimento de impostos, até mais que o crédito. E do meu ponto de vista de quem já foi gestor público, tem uma série de cuidados que você tem que tomar. Você tem que se preservar, e daí surgiu a “PEC da Guerra”, que auxilia o BC na compra de títulos. Vários países da América Latina já estão fazendo isso e nós não podemos.

Agora estamos em ritmo mais adequado. Mas o efeito da pandemia é inerentemente mais rápido. De repente estava todo mundo trancado em casa e é impossível ter sido mais rápido do que esse choque inicial.

Valor: Sobre a PEC do Orçamento de Guerra, as preocupações de alguns agentes do mercado sobre a qualidade do crédito que o BC deve incluir em seu programa de compras e sobre o impacto da “operação twist” na dívida bruta são válidas?

Kawall: É uma medida importante porque tem essa faculdade em outros bancos centrais. O Fed buscou recentemente ter esse instrumento a mais porque hoje o endividamento privado das empresas é muito maior do que era em 2008, quando era muito concentrado no setor imobiliário. Entendo que o efeito direto da atuação do BC é importante, mas há um efeito indireto também importante de sinalização.

Valor: Por quê?

Kawall: Não acho que vão comprar volumes gigantes de dívida. Acho que vai haver uma preocupação com o risco de crédito. A ideia é preservar o patrimônio público, não é comprar coisa que depois dá prejuízo, inclusive do ponto de vista do gestor público seria um problema fazer isso. Então eu acho que será algo que ajudará, assim como os leilões que o Tesouro faz quando ele recompra dívida. Aí nesse caso não está tendo risco de crédito, ele está pagando a sua própria dívida. Isso acaba potencializando o efeito benéfico, que é estabilizar o mercado e fazer com que ele volte e funcionar, e os preços dos títulos que caem muito voltem a subir pela própria recuperação do mercado. Acho que o BC tem atuado bem, são pessoas que conhecem o assunto e não imagino que fossem fazer nada que não fosse prudente porque isso do ponto de vista do gestor público é muito arriscado.

Valor: E o efeito das compras do BC na dívida bruta? Pode ser relevante?

Kawall: Frente ao que já fizeram, não. A liberação de compulsórios já dá 1,6% do PIB de aumento de dívida bruta. Isso é instantâneo. A outra linha de letras financeiras que estão regulamentando agora, o montante esperado é muito grande também. Comparativamente ao que o BC fez no compulsório e nessa linha, não me preocupa tanto. E no final ele vai receber isso, porque ele vai comprar um título e algum dia isso será pago e isso vai voltar e efeito é compensado. No caso do título privado, você compra uma vez, pode vender antes se tiver lucro, de repente lucra com isso e vende. Ou no vencimento você recebe e ponto, e há compensação na dívida bruta.

Valor: Como estará o ambiente para aprovar reformas estruturais após a crise?

Kawall: Vai ficar ainda mais claro a necessidade delas, porque a gente entra no capítulo de pagamento da conta. A primeira maneira de pagá-la é evitar que o juro tenha que subir ou que deixe de ficar baixo o tempo suficiente para a economia se recuperar. Se mantivermos o compromisso com reformas, o juro pode ficar baixo durante bom tempo e isso é parte do custo da dívida. Em segundo lugar, teremos que voltar a discutir alguns temas como a PEC Emergencial, a reforma administrativa, tudo no sentido de segurar gasto obrigatório. Isso é importante não só para a União, mas também para Estados e municípios grandes. Tem também a PEC do Pacto Federativo. E aí tem que crescer mais. Reformas ligadas à oferta da economia - muitas das quais a gente estava indo num bom ritmo, como a Lei do Saneamento, a privatização da Eletrobras - vão ter que ganhar celeridade.

Valor: E a reforma tributária?

Kawall: É um grande nó. Acho para este ano fica muito comprometida por causa da polêmica envolvida, mas de repente conseguimos avançar nas mais urgentes, emergenciais, neste ano, e eventualmente avançar na tributária este ano e concluir ano que vem. Estamos numa onda reformista de praticamente quatro anos, e a gente continuar nessa toada é a única solução. Se o coronavírus tivesse chegado aqui em 2015, 2016, não íamos ter a menor capacidade de reagir. Hoje estamos podendo ter reação porque conseguimos controlar o crescimento da dívida em 2019, com vendas de ativos e um monte de coisa por trás também. Não é que a situação já era a ideal. Agora precisamos perseverar nesse caminho. A chance disso acontecer é grande, de 70% a 80%, mas também vai depender um pouco da conjuntura política. Seria importante, saindo dessas votações emergenciais, o Congresso não perder esse fim de ano.