Valor Econômico, v. 20,
n. 4981, 15/04/2020. Finanças, p. C6
Coronavírus e a Câmara:
uma aula de economia brasileira
André Rocha
O Brasil, país com forte desigualdade social, vem há 50 anos tentando resolver
o problema via aumento dos gastos públicos. A maior parte é desperdiçada em
desvios, políticas econômicas ineficientes e manutenção de uma máquina estatal
que atende apenas à elite burocrática. Apenas pequena parcela chega de fato aos
mais vulneráveis como o Bolsa Família e a renda mínima aos maiores de 65 anos
(BPC).
As alternativas para
cobrir esses gastos são cada vez mais limitadas. Os dois últimos governos têm
tentado conter o déficit público. Essa estratégia cria desafetos: a classe
política e os que se beneficiam da antiga estrutura. Para esses, a crise
desencadeada pelo coronavírus veio bem a calhar.
A equação da restrição
orçamentária do governo indica as opções para o financiamento dos gastos
públicos. Embora pareça complicada, a equação é intuitiva: g = t + b’ - (r - n)
b + (i + n) m + m’, onde: “g” são os gastos do governo; “t”, a arrecadação tributária;
“b’ ”, a emissão líquida de títulos públicos; “r”, a taxa de juros reais; “n”,
a taxa de crescimento real do PIB; “b”, o estoque de títulos públicos; “i”, a
inflação; “m”, o estoque de moeda na economia; e “m’ ”, a emissão de moeda.
O financiamento dos
gastos (lado direito da equação) pode ser feito de diferentes formas: tributos
(t), endividamento (b’), inflação (i) e crescimento (n). Entre o fim da década
de 60 e início dos anos 90, o governo se financiou primordialmente com
inflação. As despesas públicas eram corroídas mais do que a receita tributária
com a perda do valor da moeda. A espiral inflacionária corroía o poder de
compra da
população, especialmente
a de baixa renda e desestruturava o sistema produtivo. Debelar a inflação foi o
principal tema da eleição de 1989. A sociedade mostrava-se cansada.
O Plano Real foi eficaz
em reduzi-la, mas criou um problema: como continuar financiando o aumento dos
gastos públicos imposto pela Constituição de 1988? A solução foi elevar os
tributos (t). Essa estratégia começou no governo FHC e continuou no do PT. A sociedade
mais uma vez ficou desconfortável. Em 2007, apesar da forte popularidade do
presidente Lula e do apoio parlamentar regado a mensalão, o Senado derrubou a
CPMF, tributo calculado sobre as transações bancárias. Outra forma de
financiamento atingia seu limite.
A busca por popularidade
fez com que os gastos continuassem crescendo, só restando ao governo Dilma
utilizar a última alternativa “fácil” para se financiar: o endividamento. O
aumento da dívida ocorria com a transferência de recursos do Tesouro para os bancos
públicos a fim de financiar projetos subsidiados como o “Minha Casa Minha vida”
e o PSI (programa de sustentação de investimentos). O endividamento atingiu
níveis elevados para um país emergente, superior a 70% do PIB. A inflação
começou novamente a se manifestar e o governo buscou controlá-la da pior
maneira: intervindo no preço dos combustíveis e no da energia elétrica,
desestruturando esses setores e elevando o endividamento das estatais Petrobras
e Eletrobrás.
Com a recessão provocada
pelo governo Dilma, Michel Temer buscou fazer diferente: controlar o déficit
público de forma sustentada via emenda constitucional, algo que não ocorria
desde o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) do início do governo militar.
Jair Bolsonaro seguiu o mesmo caminho com a aprovação da Reforma da
Previdência, a redução da atuação dos bancos públicos e a discussão de reformas
estruturais como a tributária e a administrativa. Os juros se reduziram, o que
é positivo para a atividade econômica.
Mas a pandemia de
covid-19 interrompeu essa trajetória. A atuação do Estado para auxiliar os
autônomos e as empresas de menor porte para sustentação do emprego se fez
necessária. Esse aumento do endividamento é justo, mas deve ser temporário.
Contudo, a Câmara dos
Deputados aproveitou a oportunidade para resolver o problema estrutural dos
Estados e municípios com a aprovação de uma proposta de recomposição das perdas
do ICMS e ISS derivada da crise do coronavírus e a suspensão dos pagamentos a
BNDES e Caixa até o fim do ano. Esse auxílio ocorre sem qualquer
contraprestação dos entes federativos, como corte ou congelamento dos salários
dos funcionários públicos ou um programa de venda de empresas públicas. Mais
uma vez, a crise passa ao largo do setor público, sendo absorvida
exclusivamente pelo setor privado, com desemprego e quebra de empresas.
Após décadas de elevação
dos gastos, a realidade bate à porta. As três opções de financiamento adotadas
até agora se exauriram. Resta a forma mais eficiente: o crescimento econômico.
O déficit público
precisa ser contido. A Nova Previdência foi fundamental, mas a reforma do
Estado precisa prosseguir com a eliminação dos gastos supérfluos. Essa nova
estratégia será vitoriosa? Mas tampouco será a adotada há 50 anos que não
melhorou a educação, a segurança pública e prejudicou o crescimento econômico,
mantendo o país desigual. A elevação do PIB, que contribuirá para financiar os
gastos públicos aos realmente necessitados e gerar empregos, não ocorrerá com
as finanças públicas em frangalhos. Política social sem crescimento não é
sustentável. Quase 50 anos não foram suficientes para ensinar?
André Rocha é mestre em
economia pela FGV/EPGE, advogado pela Gama Filho e analista certificado pela
Apimec. Possui atualmente um blog no site Valor Investe
As opiniões contidas
neste espaço refletem a visão do analista sobre as companhias, e não a do Valor
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