Valor Econômico, v. 20, n. 4981, 15/04/2020. Legislação & Tributos, p. E2

A pandemia e os crimes fiscais

Jair Jaloreto


No fim de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o não recolhimento do ICMS incidente em operações próprias, ainda que tenham sido devidamente declaradas ao Fisco - e independente de fraude - é crime.

De acordo com a decisão do Supremo, mesmo que se declare adequadamente o ICMS, o inadimplente pode ser condenado a uma pena que varia de seis meses a dois anos de detenção mais multa. Assim, foi chancelada definitivamente a instrumentalização da Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário como órgãos arrecadadores de tributos.

Nada seria pior ao contribuinte honesto - aquele que declara - e não sonega impostos que, maltratado por anos de recessão econômica, carga tributária massacrante, concorrência desleal e inadimplência, teve que escolher entre pagar seus funcionários, aluguel da sua fábrica, fornecedores ou o Fisco.

A comunidade jurídica recebeu a notícia do fatídico julgamento como uma bomba. Ora, a Corte Suprema acabara de colocar no mesmo patamar o inadimplente e o criminoso! Igualmente ficou indignada a classe empresarial. Porém, nada estava perdido: o reaquecimento da economia significava, na prática, um salvo-conduto a esse tipo de pecado. Os erros do passado seriam perdoados mediante parcelamentos factíveis, e a pujança econômica vindoura anularia os efeitos negativos e profundamente injustos do novo entendimento, pois uma economia ativa e próspera possibilitaria ao empresário pagar suas contas - incluindo os impostos.

Pois bem. Primeiro trimestre de 2020. Nossa economia estava finalmente começando a dar sinais de recuperação, após anos de estagnação e retrocesso: segundo ano do novo governo federal, otimismo nas relações internacionais, reforma previdenciária entregue, reforma tributária a caminho. Bolsa ultrapassando a marca de cem mil pontos, projetos saindo do papel. Quase céu de brigadeiro.

Então, Coronavírus. O mundo e o Brasil já sentem os fortes impactos econômicos da pandemia, que infelizmente vieram para ficar por algum tempo. As relações jurídicas entre as pessoas, entre parceiros comerciais, consumidor e empresa, entre patrão e empregado e principalmente entre o Estado e o jurisdicionado vão ser largamente impactadas.

O entendimento do Poder Judiciário em relação a velhas questões agora necessariamente será redesenhado, a partir de outra ótica. As demandas levadas aos tribunais certamente serão vistas a partir da premissa da teoria da imprevisão. Quer dizer que, diante da existência de algo novo, imprevisível (caso fortuito, força maior), os pactos antes firmados devem ser avaliados a partir de nova perspectiva.

Em nosso entender, a criminalização da inadimplência do ICMS declarado não terá tratamento diferente pelo Poder Judiciário, que deverá rever seus conceitos, a partir de uma análise 360 graus. Teremos pela frente no mínimo duas situações distintas, mas muito parecidas entre si. A primeira é o caso do empresário que, investigado por sonegação fiscal, optou por parcelar débito de ICMS declarado, não pago no vencimento por falta de caixa, para mitigar o risco de uma condenação criminal. Sem recursos para honrar os pagamentos do parcelamento, estará, novamente, com a espada da persecução penal no pescoço e, nestas condições, dificilmente conseguirá pagar ou parcelar o seu débito, indo para o banco dos réus.

A outra situação é a do empresário que, a partir da crise provocada pela disseminação do vírus, veja seu negócio ruir. Não sonegará impostos, posto que é um bom empresário, honesto. Não é criminoso, não é fraudador. Priorizará outros pagamentos como meio de sobrevivência de sua empresa, tais como salários, fornecedores, aluguéis etc. e, em pouco tempo, terá igual sorte ao personagem do primeiro exemplo. Irá ao banco dos réus, em tratamento idêntico ao dado aos fraudadores e criminosos, por força daquela decisão do Supremo.

Mas as regras deste jogo vão ter que mudar. Em Direito Penal vale o instituto da inexigibilidade de conduta diversa, como causa supralegal (não é previsto em lei) excludente de culpabilidade do agente do crime. A jurisprudência maciça de nossos tribunais entende que, diante da absoluta falta de recursos financeiros, devidamente comprovada, não restando aos administradores da empresa inadimplente qualquer opção a não ser deixar de pagar impostos para garantir o emprego e a subsistência de seus funcionários e a manutenção da existência da sua empresa, a sua conduta, mesmo prevista em lei como crime, seria impunível. Não obstante o entendimento final do STF a respeito do assunto, as circunstâncias determinarão a sua releitura.

Assim, há esperança. O Poder Judiciário é composto de mulheres e homens sensíveis aos fatos sociais, sujeitos às mesmas agruras dos jurisdicionados, aos mesmos “atos de Deus”, capazes de aplicar a lei, e sobretudo a sabedoria, aos fatos concretos. A pandemia que hoje nos separa fisicamente nos unirá na solidariedade, no senso de união e na necessidade da construção de uma sociedade mais justa.

Jair Jaloreto é advogado, sócio de Jaloreto e Associados, presidente da LexNet Law Firms Alliance, diretor do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE) e especialista em Direito Penal das Empresas e Integridade Corporativa.

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