O Globo, n. 32488, 19/07/2022. Política, p. 4

Sem limites

Eliane Oliveira
Mariana Muniz
Jussara Soares
Alice Cravo
Daniel Gullino


Numa elevação de patamar dos ataques ao sistema eleitoral e ao Judiciário brasileiros que vem fazendo desde que assumiu o cargo, o presidente Jair Bolsonaro reuniu cerca de 70 embaixadores e outros representantes de diversos países ontem no Palácio da Alvorada para repetir informações falsas sobre urnas eletrônicas e ministros de tribunais superiores. A investida pode ensejar acusação de uso indevido do cargo e campanha eleitoral antecipada, já que o evento ocorreu durante o expediente e num prédio da Presidência da República, com transmissão por canais oficiais de comunicação. Menos de uma hora depois, num duro discurso, o presidente do TSE, Edson Fachin, rebateu as acusações ao dizer que há uma tentativa de “sequestrar” a “opinião pública” e pedir um basta à “desinformação” e ao “populismo autoritário”.

— Há um inaceitável negacionismo eleitoral por parte de uma personalidade importante dentro de um país democrático, e é muito grave a acusação de fraude (má-fé) a uma instituição, mais uma vez, sem apresentar provas — afirmou Fachin na abertura de evento da OAB no Paraná.

Visivelmente incomodado com a leva de ataques, sem citar Bolsonaro nominalmente, o ministro criticou a estratégia do presidente de levar à comunidade internacional as fake news que costuma disseminar em seus discursos.

— É hora de dizer basta à desinformação e hora também de dizer basta ao populismo autoritário — resumiu Fachin.

Bolsonaro apresentou slides e falou por 50 minutos diante dos representantes diplomáticos de dezenas de países. O Palácio do Planalto não divulgou a lista de presentes. O GLOBO apurou, contudo, que havia enviados das embaixadas de Portugal, França, Itália, Estados Unidos, Colômbia, Uruguai, Palestina, Marrocos, Argélia, Rússia, Espanha e Israel, entre outros. O presidente reiterou informações falsas sobre a confiabilidade do sistema eleitoral.

— Não é o TSE que conta os votos, é uma empresa terceirizada.

Acho que nem precisava continuar essa explanação aqui — disse.

Nunca houve comprovação de fraudes nas eleições brasileiras desde que as urnas eletrônicas foram implantadas, em 1996. Ao contrário do que o presidente disse, a contagem é feita pelo próprio TSE.

O presidente evocou, por exemplo, acusações de fraudes jamais comprovadas. A certa altura do discurso, disse haver “mais de cem vídeos” de eleitores que tentavam apertar o número 17 na votação de 2018, mas a urna registrava o número 13.

Inicialmente, estava prevista uma explanação do ministro da Defesa, Paulo Sergio Oliveira. O presidente, porém, monopolizou o microfone. Bolsonaro repetiu que uma decisão de Fachin tirou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) da cadeia, embora ela tenha sido solto após sentença do colegiado do STF. Ele novamente tentou questionar a imparcialidade dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.

— O ministro Fachin foi quem tornou Lula elegível, e agora é presidente do TSE. Ministro Barroso foi advogado do terrorista (Cesare) Battisti, que recebeu aqui o acolhimento do presidente Lula em dezembro de 2010. O ministro Alexandre de Moraes advogou no passado para grupos que, se eu fosse advogado, não advogaria — repetiu.

Aliados admitem estrago

Embora tenham tentando minimizar os danos que a apresentação deverá causar à imagem do Brasil internacionalmente, alguns dos aliados mais próximos do presidente admitiram em conversas reservadas que a repercussão do evento foi “péssima”. Esses interlocutores dizem que Bolsonaro segue ignorando apelos para tirar o pé do acelerador e que ele continuará empenhado em colocar Alexandre de Moraes e o TSE sob suspeição. Esses mesmos personagens rechaçam, porém, a possibilidade de ruptura institucional.

Fora do Planalto, amais nova investida antidemocrática do mandatário gerou críticas severas de importantes personagens, como o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e dos principais pré-candidatos a presidente. Aliado deBol sonar o,op residente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), silenciou diante das inverdades proferidas contra o Judiciário.

Pacheco lembrou que “a segurança das urnas eletrônicas e a lisura do processo eleitoral não podem mais ser colocadas em dúvida. Não há justa causa e razão para isso. Esses questionamentos são ruins para o Brasil sob todos os aspectos”. Apontou ainda que o presidente citou “obviedades e questões superadas” que “não mais admitem discussão”.

Para o pré-candidato do PT e principal concorrente de Bolsonaro nas eleições deste ano, Luiz Inácio Lula da Silva, o chefe do Executivo não está à altura do cargo.

“É uma pena que o Brasil não tenha um presidente que chame 50 embaixadores para falar sobre algo que interesse ao país (...). Ao invés disso, conta mentiras contra nossa democracia”, disse Lula também por meio de rede social.

A pré-candidata pelo MDB, Simone Tebet, acusou Bolsonaro de envergonhar o país perante a comunidade internacional: “O Brasil passa vergonha diante do mundo”, escreveu.

TSE rebate

Já Ciro Gomes, pré-candidato pelo PDT, classificou as acusações de Bolsonaro de “horrendo espetáculo”. “Nunca, em toda história moderna, o presidente de um importante país democrático convocou o corpo diplomático para proferir ameaças contra a democracia e desfilar mentiras”, complementou, em de nota.

Em comunicado veiculado após o evento no Palácio Alvorada, o TSE reforçou “anos tradição de diálogo com corpo diplomático internacional”, com quem sempre buscou estreitar relações. De acordo com a Corte ,“o objetivo principal dessas reuniões sempre foi o de prestar informações e trazer esclarecimentos sobre o processo eleitoral brasileiro aos representantes das diversas nações”.

“A segurança das urnas e a lisura do processo eleitoral não podem mais ser colocadas em dúvida”

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado