O Globo, n. 32489, 20/07/2022. Brasil, p. 12
Cárcere mortal
Arthur Leal
Primeiro presídio voltado exclusivamente para a população LGBTQIAP+, a Penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, em São Joaquim das Bicas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, foi interditada há uma semana pela juíza Bárbara Isadora Santos Sebe Nardy, da Vara de Execuções Penais de Igarapé. A decisão foi tomada depois de 13 suicídios e outras 60 tentativas de suicídio na unidade em um ano e meio.
Defensores públicos denunciam desde o ano passado que os 400 internos do presídio sofrem com a falta de condições de atendimento a problemas psicológicos, e o abandono familiar dos que foram transferidos de locais distantes. Após visitar a penitenciária, a juíza determinou a interdição, um dia depois de mais um caso de suicídio.
Isadora ordenou que, por 365 dias, a Jason Soares Albergaria não poderá receber presos de outros lugares além da Região Metropolitana de BH. Além disso, presos que já estão na unidade, mas vieram de fora da região da capital, deverão ir para presídios perto de onde moravam, em até 90 dias.
O defensor público Paulo César de Azevedo Almeida diz que os presos não contam com médicos, dentistas, psicólogos, itens básicos de higiene, e sofrem humilhações constantes. Há relatos de ofensas de agentes penitenciários. A falta de controle na entrega de remédios contribuiu para os suicídios, afirma.
— Ajuizamos uma ação civil pública contra o estado em que pedimos uma indenização coletiva em razão dessas mortes, por negligência na prestação de serviços básicos de saúde mental — conta Almeida.
— São pessoas que já são vulneráveis por conta do contexto de LGBTfobia e de marginalização na sociedade. No sistema prisional, continuam sofrendo, tanto com outros detentos quanto com agentes penitenciários. Os nomes sociais não são respeitados. As denúncias mostram que agentes chamam travestis e mulheres trans pelo nome masculino.
Overdose
Um dos casos que mais chocou o defensor foi o de um detento que se matou ingerindo 54 comprimidos.
— Os colegas de cela advertiram os agentes, mas nada foi feito. Na unidade, como não havia uma equipe de saúde eficiente, eles entregavam o medicamento diretamente para o preso. Teve preso que foi encontrado com mais de 40 comprimidos numa caixinha. Vários presos também se suicidaram com o que chamam de “Teresa”, que é basicamente um nó no lençol — afirma o defensor, lembrando que há casos de suicidas que já haviam sido hospitalizados em uma primeira tentativa de tirar a própria vida, e deveriam ter recebido mais atenção.
— Eram pessoas que estavam em crise, tinham tendências suicidas, e, quando eram atendidas, a médica orientava a não entregar o medicamento e observar o consumo imediato, além de não entregar gilete, lençol ou materiais arriscados. Mas eles continuaram tendo acesso. Providências não foram tomadas e os corpos foram se acumulando.
Apesar de não ser superlotada, a penitenciária, segundo Almeida, tem poucos agentes penitenciários e problemas estruturais.
— Em uma das muitas visitas que fizemos, uma cela estava completamente alagada. O governo de Minas, quando criou essa política de presídios para a população LGBT, fez a promessa de que reservaria em cada uma das 19 regiões integradas de segurança pública. Mas isso nunca foi implementado. Todos os presos que se autodeclaravam LGBTs passaram a ser trazidos para a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Pessoas com laços familiares no Norte, Leste, Oeste, ficavam fragilizadas e distanciadas.
A implementação das alas dedicadas a presos LGBTs é prevista em uma resolução do ano passado publicada pelo Conselho Nacional de Justiça e segue uma tendência mundial. É permitido que eles escolham se querem ir para um presídio com alas exclusivas ou para uma penitenciária comum, mas este direito é pouco usado, por desconhecimento.
— Estudos da ONU evidenciam que pessoas LGBT, no convívio geral com outros presos, são alvo de violência física, psicológica ou estupradas — explica o defensor. —Há a crítica em relação à ideia de que este modelo cria uma marginalização maior. Mas o Estado não tem vias de garantir que uma pessoa LGBT, no convívio geral de um presídio, esteja segura. O histórico mostra que há opressão, sobretudo contra travestis.
DEPEN contesta defensor
O Departamento Penitenciário de Minas Gerais informou que investiu R$ 1,2 milhão em melhoras na infraestrutura da unidade e que há equipe médica completa na penitenciária, além de assistentes sociais e pedagogos, contrariando a acusação do defensor público. “A unidade já conta com uma equipe multidisciplinar, que foi reforçada com novas contratações em maio. Ela é composta de psicólogos, médicos psiquiatras e clínicos, terapeuta ocupacional, analistas jurídicos, assistentes sociais e pedagogos, por exemplo, para o acompanhamento de detentos nas diversas áreas”, disse o Depen-MG.
“No mês de junho, sem contabilizar os atendimentos pedagógicos, a equipe realizou 1.200 atendimentos na unidade. O local opera abaixo de sua capacidade, sem superlotação”, acrescentou o departamento. O Depen confirmou que cumprirá as determinações da Justiça e que, em todos os casos de suicídio, foram instaurados instaurados procedimentos administrativos internos. “As investigações criminais são de responsabilidade da Polícia Civil”, informou.