O Globo, n. 32490, 21/07/2022. Política, p. 4
Estatal do centrão
Aguirre Talento
Dimitrius Dantas
Uma operação da Polícia Federal realizada ontem mirou contratos bancados pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf ), estatal comandada por indicados do Centrão e que vem sendo abastecida pelo orçamento secreto, instrumento por meio do qual parlamentares destinam verbas das União sem serem identificados. Os agentes prenderam o empresário Eduardo Costa e encontraram R$ 1,3 milhão em dinheiro na casa de outro investigado, cuja identidade não foi divulgada.
Trata-se do mais duro golpe aplicado na companhia desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o poder. Ao abrir uma fenda de apuração nos negócios da Codevasf, a operação de ontem tende a gerar degastes políticos para o titular do Palácio do Planalto.
A operação, com foco na superintendência da companhia do Maranhão, foi batizada de Odoacro, sobrenome de um soldado italiano que liderou uma revolta para dar fim ao Império Romano. A alcunha faz referência ao único suspeito preso: Costa é conhecido como “Imperador”. Ele é apontado como sócio oculto da empreiteira Construservice, que executou diversas obras da estatal em municípios maranhenses. A Polícia Federal efetuou uma prisão e cumpriu 16 mandados de busca e apreensão.
De acordo com a Polícia Federal, Costa, “além de colocar as suas empresas e bens em nome de terceiros, ainda possui contas bancárias vinculadas a CPFs falsos, utilizando-se desse instrumento para perpetrar fraudes”.
Tanto o empresário quanto a Codevasf negaram qualquer participação em irregularidades.
A investigação da PF identificou diversas falhas graves nas licitações vencidas pela empresa. Os indícios apontam que firmas de fachada ligadas à Construservice eram criadas para participar dos certames e apresentar propostas menos vantajosas. O esquema, segundo a PF, tinha como objetivo que a Construservice, que “possui vultosos contratos com a Codevasf”, sempre saísse “vencedora das licitações”.
“Estréia” sob Bolsonaro
Sem nunca ter firmado contratos com o governo federal até 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro, a empresa já realizou serviços em seis estados com recursos da União. Os valores empenhados (reservados para serem pagos) pelo Executivo federal à empresa têm aumentando ano a ano: R$ 32 milhões em 2019, R$ 16 milhões em 2020 e R$ 92 milhões em 2021.
Os dados foram obtidos pelo GLOBO no Portal da Transparência e indicam que, já em 2020, a empreiteira foi uma das mais abastecidas pelo orçamento secreto. Foram R$ 58 milhões nos últimos dois anos por meio desse instrumento. Após a expansão do uso do mecanismo, o Supremo Tribunal Federal (STF) ordenou ao Congresso a definição de uma maior transparência na sistemática.
A estatal foi criada em 1974 para apoiar o desenvolvimento das regiões pobres do Vale do Rio São Francisco. Com o passar dos anos, a companhia ampliou a sua área de atuação e passou a abarcar regiões que estão a milhares de quilômetros do Velho Chico. Parte relevante desse quadro foi desenhado pelo atual governo. Durante a gestão Bolsonaro, a Codevasf ganhou postos em Goiânia, Palmas, Macapá e Natal. A cúpula da companhia está nas mãos do Centrão. O presidente da estatal, Marcelo Pinto, foi empossado em agosto de 2019, com o apoio de caciques do grupo político que é a base de sustentação do atual governo.
De 2020 para cá, o caixa da Codevasf se alimentou substancialmente do orçamento secreto, via emendas de relator. Do dinheiro que sai da União até a destinação às prefeituras, muitas vezes o circuito funciona da seguinte forma: o parlamentar assina a emenda para enviar um montante à superintendência da companhia gerida por um aliado. De lá, o valor é repassado a municípios comandados por prefeitos ligados ao mesmo grupo político. Auditorias de órgãos de controle mostram que, em algumas ocasiões, até as empresas contratadas pelas prefeituras para realizar as melhorias estão ligadas ao político que destinou a verba.
Codevasf nega
Procurada, a Codevasf alegou que a operação de ontem mirou em contratos firmados pela Construservice com prefeituras, embora os recursos sejam federais e tenham sido repassados por meio da estatal. A empresa sustenta ainda que nenhum de seus dirigentes foi alvo da ação e que os processos licitatórios são de responsabilidade das prefeituras que receberam as verbas.
Em nota, a defesa de Eduardo Costa considerou a prisão “ilegal e desnecessária”. Os advogados afirmam que ele nunca foi notificado para falar ou apresentar documentos e que agora poderá contribuir para a investigação. Os responsáveis pela Construservice não foram localizados.