Título: Os dois lados do front
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 16/12/2005, Opinião, p. A14

Em 2002, o presidente americano George Bush ainda se esforçava publicamente para demonstrar que se importava com a opinião de seu país e do mundo com relação à intenção de invadir o Iraque, eleito por ele o inimigo público número 1 passado um ano de caçada, em vão, a Osama Bin Laden. Chegou a perguntar à ONU o que achava do avanço militar àquele país. ''Esse homem, afinal, tentou matar papai'', afirmou à época, em rede nacional, referindo-se ao plano malsucedido do ditador de então, Saddam Hussein, de matar o primeiro Bush a governar a nação.

Hoje, o ex-presidente do Iraque faz cenas de insubordinação explícita e desrespeito à autoridade do próprio país no julgamento que, de certa forma, tem cedido aos caprichos do tirano malcriado. É mais prudente esperar o processo eleitoral acabar para impor ao réu o lugar que lhe cabe. Afinal, Bush tem contra sua guerra boa parte dos americanos e da comunidade internacional. Estão ambos cansados demais das estatísticas que acusam as baixas dos soldados da coalizão e dos sinais cada vez mais evidentes de que as armas de destruição em massa, procuradas teoricamente pelas tropas, jamais existiram.

O próprio presidente veio a público na quarta-feira para admitir deslizes da sua Inteligência - já muito confusa desde o 11 de setembro - na investigação da ameaça do arsenal fictício de Saddam Hussein. Mas fez o papel de líder, hábito que nem sempre cultiva, ao dizer que assumia a responsabilidade pela guerra em si. Agradou aos republicanos de sempre.

Ontem, o Iraque foi em massa às urnas para escolher um Parlamento não mais interino, eleição histórica desde o momento em que o ditador tomou o poder, há três décadas. Milhões saíram de casa para escolher o responsável por tomar conta do país quando as tropas forem retiradas. Mas o presidente George Bush insiste em dizer que o Iraque ainda não está pronto para cuidar da própria casa. Não há, portanto, nenhuma data marcada para a soberania de fato da nação estratégica para o Oriente Médio.

Considerando que o mandato dos parlamentares eleitos esta semana se estende até 2010, uma nova eleição vigiada de perto por fuzis e tanques não é hipótese de todo descartável.

O quadro atual do Iraque complica a vida dos eternos críticos de George Bush. É fato que ele foi à guerra baseado em pistas falsas. Também é inegável a arrogância inicial ao ignorar as vozes que se levantaram contra a invasão na ocasião, da forma como foi executada, a ONU incluída. E vale mencionar a suspeita cada vez mais forte de que os números de mortes de soldados americanos têm sido manipulados cuidadosamente pela Casa Branca, roubando das estatísticas os milhares que morrem longe dos campos de batalha.

Mas quem olhou para o Iraque ontem viu uma população visivelmente feliz, a despeito do clima de guerra ainda presente, a despeito de um ou outro incidente provocado pelos insurgentes, aqueles ainda fiéis a Saddam. Viu uma gente comemorando a democracia imposta a ferro, fogo e tiro, que pode ficar subjugada à vontade da Casa Branca, direta ou indiretamente, por muito tempo ainda. Mas era uma gente que sorria para os fotógrafos de todas as agências de notícias do mundo, publicidade que não tem preço para Washington.

É preciso também lembrar que o futuro do próprio Saddam Hussein é incerto, e, aqui, de novo, estão em xeque a Casa Branca e a comunidade internacional. O ex-ditador está sendo julgado por um massacre de 148 pessoas, mas ainda mantém o apoio de milhões de sunitas. Pode ser condenado à morte, pena aplicável no país a quem comete o crime do qual é acusado. Como nos Estados Unidos.

Deixar essa massa de fiéis indignada é risco alto demais. Some-se as organizações internacionais que se mobilizam contra a possível execução, sugerindo que o julgamento seja transferido para uma corte internacional, independente. Washington resiste. Os países opositores à guerra também não se manifestam muito radicalmente quanto à questão específica. Ainda não querem se expor para defender o tirano enjaulado. Bush agradece e corre sério risco de virar o jogo a seu favor.