Título: A Carta da Terra
Autor: Leonardo Boff
Fonte: Jornal do Brasil, 16/12/2005, Outras Opiniões, p. A15

É de todos sabido que a sociedade mundial vive no olho de uma incomensurável crise de sentido e de falta de rumo histórico. Não sabemos para onde vamos. Os sonhos e as utopias morreram, o que tem deixado as sociedades e as pessoas sem fundamento. Somos entregues ao sistema econômico dominante que de tudo faz mercadoria, regendo-se por feroz competição e não por laços de cooperação. Há dois pensadores que nos ajudam a entender esta crise, Max Weber e Friedrich Nietzsche. Weber caracteriza a sociedade moderna pelo processo de secularização e pelo desencantamento do mundo. Não que as religiões tenham desaparecido. Elas estão aí e até voltam com renovado fervor. Mas não são mais elo de coesão social. Agora predominam a produção e a função, e menos o valor e o sentido. O mundo perdeu seu encanto. Nietzsche anunciou a morte de Deus. Mas há que se entender bem Nietzsche. Ele não diz que Deus morreu, senão que nós o matamos. Quer dizer: Deus está socialmente morto. Em seu nome não se cria mais comunidade nem se funda coesão social.

Por milhares de anos era a religião que ligava e re-ligava as pessoas e criava o laço social. Agora não é mais. Isso não significa que agora impera o ateísmo. O oposto à religião não é o ateísmo mas a ruptura e a quebra da relação. Hoje vivemos coletivamente rompidos por dentro e desamparados. Praticamente nada nos convida a viver juntos e a construir um sonho comum. Entretanto, a humanidade precisa de algo que lhe confira um sentido de viver e que lhe forneça uma imagem coerente de si mesma e uma esperança para o futuro.

É neste contexto que deve ser vista a Carta da Terra, documento nascido das bases da humanidade. Já foi assumida pela Unesco no ano 2000, e a idéia é que seja incorporada pela Organização das Nações Unidas (ONU) à Carta dos Direitos Humanos. A Carta da Terra reúne um conjunto de visões, valores e princípios que podem reencantar a sociedade mundial. Coloca em seu centro a comunidade de vida à qual pertencem a Terra e a humanidade, que são momentos do universo em evolução. Todos os problemas são vistos, os ambientais, os sociais, os econômicos, os culturais e os espirituais, obrigando-nos a forjar soluções includentes.

O desafio que a situação atual do mundo nos impõe é, segundo a Carta, este: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou então arriscar a nossa destruição e a devastação da diversidade da vida.

Dois princípios visam viabilizar esta aliança: a sustentabilidade e o cuidado. A sustentabilidade se alcança quando usamos com respeito e racionalidade os recursos naturais, pensando também nas futuras gerações. E o cuidado é um comportamento benevolente, respeitoso e não agressivo para com a natureza, que permite regenerar o devastado, e zelar por aquilo que ainda resta da natureza, da qual somos parte e da qual compartilhamos um destino comum.

Estes dois princípios fundam, como diz a Carta da Terra, um modo de vida sustentável. Eles permitem um desenvolvimento que atenda às necessidades de todos os seres vivos e ao mesmo tempo garanta a integridade e a capacidade de regeneração da natureza.

Devemos viver em função de um sentido de responsabilidade universal. O futuro da Terra e da humanidade está agora em nossas mãos.