Título: Criança e adolescente: vexame brasileiro
Autor: Dalmo de Abreu Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 17/12/2005, Outras Opiniões, p. A13

No dia 12 deste mês instalou-se em Brasília a VI Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, promovida pelo Conselho Nacional criado para cuidar especificamente desses direitos, o Conanda, que decidiu promover um debate de âmbito nacional sobre a situação da criança e do adolescente no Brasil após 15 anos de vigência da lei federal que instituiu o ECA, Estatuto dos Direitos da Criança e do Adolescente. O que inspirou a iniciativa do Conanda foi o desejo de rememorar o caminho já percorrido, especialmente em termos de afirmação e proteção de direitos, e avaliar perspectivas de futuro. Por coincidência e ironicamente, naquele mesmo dia a Corte Interamericana de Direitos Humanos, apreciando denúncias de graves ocorrências vitimando crianças e adolescentes numa Febem paulista, decidiu determinar que o estado de São Paulo adote providências imediatas para que sejam cumpridas as obrigações jurídicas assumidas pelo Brasil no plano internacional. Assim, foi determinada a cessação de internações prolongadas e de maus tratos no estabelecimento que deveria ser, pela legislação brasileira, uma instituição educacional, garantindo proteção à integridade física e mental dos internados e à sua dignidade humana, dando-lhes a possibilidade de pleno desenvolvimento da personalidade. Isso que acontece em São Paulo é comum em quase todo o Brasil, sendo oportuno lembrar o que dispõem as leis sobre a matéria, para saber se as falhas estão aí ou nos governos.

Se fossem efetivamente aplicadas as leis brasileiras que tratam dos direitos da criança pode-se afirmar que todas as crianças do Brasil estariam com seus direitos fundamentais reconhecidos e protegidos, não sofreriam discriminações nem explorações injustas, teriam plenamente atendidas todas as suas necessidades básicas e poderiam desenvolver plenamente sua personalidade. Tudo isso está previsto nas leis brasileiras, o que contrasta com a realidade, que mostra grande número de crianças vítimas de muitas injustiças, tendo extrema dificuldade para sobreviver e recebendo tratamento que agride sua dignidade de pessoa humana.

A Constituição brasileira, promulgada em 1988, foi elaborada em ambiente de intensa mobilização popular e isso influiu muito para que a corrente humanista, que se reflete concretamente no mundo jurídico através das normas de direitos humanos, obtivesse várias conquistas importantes. Uma delas é, precisamente, a expressa afirmação dos direitos da criança, num capítulo que trata ''Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso''. Além disso, a dignidade da pessoa humana é referida como um dos fundamentos da República, os direitos humanos são incluídos entre os princípios que deverão orientar as relações internacionais do Brasil e nos capítulos dedicados à educação e à saúde há referência expressa aos cuidados que devem ser dispensados à criança, que os governos estão obrigados a tratar como prioridade.

Em relação aos direitos específicos da criança, devem ser lembrados o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção sobre os Direitos da Criança, compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e já incorporados ao direito brasileiro. São obrigações jurídicas, que se forem respeitadas, irão garantir a proteção da criança e a promoção de seus direitos. No âmbito do direito interno, o Brasil tem hoje uma lei bem elaborada, dedicada aos direitos da criança e às responsabilidades por sua implementação e proteção. Essa lei é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei federal número 8069, de 1990, que substituiu o antigo Código de Menores. O ECA introduziu mudanças fundamentais na concepção da criança e de seus direitos, na fixação de responsabilidades e na indicação de instrumentos organizativos destinados a dar papel ativo à comunidade na proteção da criança e na promoção de seus interesses. A par disso, reforçando o disposto na Constituição, o ECA atribuiu grande responsabilidade ao Ministério Público pela vigilância das atividades públicas e privadas relacionadas com a criança, dando-lhe competência para a adoção de medidas judiciais e extrajudiciais para exigir o respeito aos direitos da criança.

É necessário e urgente que as instituições incumbidas de exigir dos governos o respeito aos direitos consagrados na Constituição e nas leis atuem com independência e firmeza