Título: Infância agredida
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/12/2005, Opinião, p. A10

Há muito tempo se diz que o quadro dentro das instituições estaduais encarregadas da guarda dos menores apreendidos por decisão da Justiça é tenebroso. A falta de um compromisso político com o tratamento e a recuperação desses jovens, algo previsto por lei, é notória e atravessa governos de todos os matizes ideológicos, como se esse fosse um problema espinhoso demais para ser encarado. Não é privilégio do Rio, como as rebeliões em outros estados sempre demonstram. Mas nada supera a revelação, exposta em reportagem do Jornal do Brasil , de que à ausência do poder público na atuação reeducativa se soma o abandono do cuidado com a saúde dos internos. Há muito se pede uma redefinição nacional que devolva aos menores infratores algum horizonte diferente daquele que a sociedade mostra aos que cometeram desvios. Mas este tem sido um debate longo e em círculos, que esbarra em fatores sobre os quais sobram divergências. Muitas delas reflexo de preconceitos, leituras emocionais e distorções gerados a partir de uma percepção histórica desenvolvida ao longo dos ciclos políticos que o país atravessou. O que não se compreende é a incapacidade de atender a um direito básico do cidadão, principalmente aquele sob a guarda do Estado. Viver com saúde é fundamental, porque códigos legais que condenam ao oposto não existem. Não há crime que faça alguém merecedor de cumprir sua pena com doenças.

O orçamento estadual deste ano previa o dispêndio de R$ 1,6 milhão dentro do Programa de Saúde do Adolescente em Conflito com a Lei. A verba deveria ter sido aplicada no cuidado dos 840 internos sob a responsabilidade das seis unidades do Departamento de Ações Socioeducativas (Degase). Mas, segundo o deputado Alessandro Molon, nem um centavo foi aplicado nesse campo. Situação semelhante havia ocorrido com o dinheiro reservado no ano passado.

O efeito está pelos cantos dessas unidades, que funcionam como balões de ensaio das penitenciárias. Deixados à mercê da falta de higiene e da superlotação - há 234 internos a mais no sistema - muitos menores sofrem com sarna e outras moléstias típicas de ambientes imundos. Há entre eles quem esteja aguardando há dias por um exame médico devido a dores severas. A revolta diante do quadro exposto torna qualquer trabalho de recuperação inútil e fadado ao fracasso. E a criminalidade recebe novos e ferozes quadros.

O quadro, terrível diante da falta de sensibilidade das autoridades, torna-se mais grave quando se pensa na projeção para o próximo ano. Do total previsto no orçamento atual, restaram apenas R$ 150 mil para o programa. Isso significa que os pais dos internos continuarão a ter de comprar os remédios de que os filhos necessitam se quiserem que eles sobrevivam. Ou que os agentes penitenciários continuem a transportar menores para atendimento médico-hospitalar usando os próprios carros. Ou ainda que os médicos sejam forçados a levar os remédios de que precisarão quando fizerem atendimentos nesses locais.

Há casos nos quais a gravidade da situação é ainda mais gritante. O programa prevê o combate à dependência química, problema que acomete a maior parte dos menores. Mas não há instalações mínimas para isso. A incidência do vírus HIV, outra perversa realidade que acompanha os internos, igualmente não justifica ação proporcional entre as autoridades. Desta forma, meninas grávidas e portadoras da doença têm sido devolvidas às casas dos pais ou transferidas para abrigos onde tanto elas quanto os bebês tenham alguma chance de tratamento.

O argumento oficial é o de que o remanejamento de verbas orçamentárias é algo comum e uma ''realidade nacional''. Explica mas não justifica. Como sustentação, o governo afirma que mais recursos serão pedidos caso os R$ 150 mil não sejam considerados suficientes. Não são, e a julgar pelo que mostra a reportagem, a medida já deveria ter sido tomada, uma vez que o valor é suficiente apenas para a compra de medicamentos durante seis meses nas unidades.