Título: A procura da verdade
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 18/12/2005, Outras Opiniões, p. A11

Faz dez dias que o escritor britânico Harold Pinter recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Mas o discurso que leu por meio de uma fita de vídeo, já que estava internado porque sofre de câncer, durou 46 minutos e provocou comentários e reflexões que fizeram jornalistas e historiadores lembrar que os fatos recentes também são históricos, e que muitas coisas ainda estão frescas na nossa memória, mesmo que pareçam adormecidas. Pinter foi o menino que disse que o rei anda nu há tempo.

O discurso de Harold Pinter chamou atenção da opinião pública mundial porque diz respeito às tragédias a que assistimos em tantos lugares, seja no Iraque, no Oriente Médio, na América do Norte ou na América Latina, incluindo o Brasil. Tragédias que podem acontecer nos dias de hoje ou décadas atrás, mas todas na lembrança do escritor de 75 anos (Veja texto integral no www.nobelprize.org)

Pinter disse que, em 1958, escreveu que ''uma coisa pode ser falsa e verdadeira ao mesmo tempo'', quando se trata de arte. Isso acontece não só nas obras literárias, mas também em outros campos artísticos. Picasso, por exemplo, ao distorcer as figuras, dava-lhes contornos de emoção e verdade que até o final dos tempos vão comover outros seres humanos. Voltando a Harold Pinter, mais adiante ele diz: ''Como escritor reafirmo o que eu disse. Mas não posso fazê-lo como cidadão. Em minha condição de cidadão, me cabe perguntar: o que é verdadeiro? O que é falso?''

Aparentemente, o homem e o artista se dividem, mas Pinter logo se encarrega de esclarecer que, na dramaturgia, a verdade ''é sempre fugaz, mas a busca por ela é compulsiva''. Depois de contar minuciosamente seu processo de criação de personagens, Pinter se debruça sobre a política.

Aí vemos o autor escancarando tantas verdades que, embora muitas delas estejam bem na frente dos nossos olhos e ao lado dos nossos ouvidos, fazemos questão de ignorar, já que negá-las é impossível. Às vezes arte e realidade se confundem. Uma reflete a outra. Ele lembra que em sua peça Mountain language, soldados que praticam a tortura se divertem com ela. ''Isso, evidentemente, foi confirmado mais tarde pelos acontecimentos em Abu Ghraib e Bagdá'', declarou. Referia-se aos sorrisos debochados dos soldados americanos, entre eles uma mulher, posando para fotos enquanto torturavam presos iraquianos.

Sobre a invasão do Iraque, Pinter lembra que todos acreditaram que Sadam Hussein tivesse terríveis armas químicas prontas para destruir a humanidade. Agora, sabe-se que a verdade é outra: tudo não passou de mentira, o Iraque jamais possuiu esse arsenal, e o próprio governo norte-americano admitiu isso. Falando com dificuldade, Pinter lembrou que 100 mil iraquianos e dois mil soldados norte-americanos foram mortos - sem contar os milhares e milhares de feridos e mutilados - porque a verdade não interessava.

E pergunta: ''O que aconteceu à nossa sensibilidade moral?...Será que tudo isso morreu?''

O maior dramaturgo inglês da atualidade, falando como cidadão do Reino Unido, prossegue: ''Nós levamos tortura, munição fragmentável, projéteis de urânio, inumeráveis atos de homicídio aleatório, miséria, degradação e morte ao povo iraquiano e a isso chamamos levar liberdade e democracia ao Oriente Médio''.

Pinter falou de Pablo Neruda, outro amante da verdade e da liberdade, também ganhador do Nobel, que escreveu um poema notável a respeito da Guerra Civil Espanhola (1936-39). ''Estou explicando algumas coisas'', disse. E declamou seu poema denominado ''Morte'': ''... Onde o corpo foi encontrado?/ Quem encontrou o corpo?/ O corpo estava morto quando foi encontrado?/ Como o corpo foi encontrado?/ Quem era o corpo?/ Quem era o pai ou filha ou irmão/ Ou tio ou irmã ou mãe ou filho/ Do corpo morto e abandonado?''.

Claro que o poema pode fazer lembrar o Iraque, o Afeganistão, ou a Bósnia e a Sérvia de 10 anos atrás. Mas também lembra as ditaduras da Argentina, do Paraguai, do Uruguai, do Chile, terra natal de Neruda, ou do Brasil nos anos 60 e 70. Assim como pode trazer a lembrança dos garotos do Rio e de São Paulo de hoje, dos que desapareceram nesta semana e toda semana, garotos quase sempre pobres, como constatou a Anistia Internacional, e como está constatando nestes dias a relatora para os Direitos Humanos da ONU, que nos visita oficialmente.

Como disse Pinter, às vezes tropeçamos na verdade em plena escuridão.

Mas há outros fatos nos últimos dias, com outras verdades que alguns não querem ver. Uma delas é a inutilidade da aplicação da pena de morte, que ocorreu na terça-feira, nos Estados Unidos, quando foi executado Stanley Williams. De criminoso chefe de gangue, transformou-se em escritor pacifista. Enquanto lhe davam uma injeção letal em San Quentin, na Califórnia, outra pacifista, Joan Baez, cantava com a multidão que protestava do lado de fora. Juntei-me a eles e a todos que não aceitam a pena capital. É só um crime a mais, um assassinato pelo Estado. E onde estava a verdade nesse caso? Penso que permanecia nos levantamentos estatísticos, que provam não ser esse o meio mais eficaz para diminuir a criminalidade e a violência, mesmo que absurdas.

Toda minha solidariedade a Harold Pinter e aos amantes da verdade do mundo inteiro.