Título: Afonso Arinos
Autor: Marco Maciel
Fonte: Jornal do Brasil, 19/12/2005, Outras Opiniões, p. A12

A genealogia, em seu estrito sentido, rezam os dicionários, é o estudo da ciência com a finalidade de determinar a origem das famílias. Todavia, é necessário vê-la também como algo fundamental para o conhecimento da vida de um povo, conforme entendimento de Foucault ao considerar como seu objeto ''identificar as relações do poder que deram origem a idéias, valores ou crenças''.

É nessa perspectiva que se deve situar a singularmente múltipla personalidade de Afonso Arinos de Melo Franco, num instante em que a nação faz memória do centenário de seu nascimento.

De diferentes formas, Afonso Arinos se manifestou e legou um acervo ainda não de todo conhecido. Polígrafo, doutrinou no território do Direito - como professor e jurista -, foi historiador e memorialista, cronista, ensaísta, crítico literário, articulista, conferencista.

Se tanto se pode salientar de sua abrangente produção intelectual, em menor plano não se deve situar a sua vida pública, vocação desde cedo despertada. Homem de Estado, probo e lúcido, Afonso Arinos pode ser definido como um liberal da mais lídima tradição da política brasileira. Ser liberal é, antes, uma atitude, um estilo de vida, ''uma conduta existencial'', como definiu Raymond Aron. Ademais, os liberais não se proclamam portadores da verdade e sabem que somente o debate e a controvérsia inoculam enzimas que fertilizam a solução dos problemas da sociedade.

Designado por Tancredo Neves, presidiu o grupo de notáveis que ficou conhecido como ''Comissão Arinos'' e foi incumbido de elaborar sugestões à Constituinte instalada em 1987. Mais adiante, foi escolhido para dirigir a comissão de sistematização, que elaborou o projeto de Constituição a ser discutido pelo plenário.

Na sessão de promulgação da Carta de 1988 lembrou, em nome dos constituintes, a experiência histórica brasileira e observou que os autores de Direito Constitucional Comparado registram um fenômeno marcante: ''(...) nunca existiu distância maior entre a letra escrita dos textos constitucionais e a sua aplicação''. E, ao encerrar, advertiu que outra tarefa se abria aos membros do Congresso, a de, ''apesar de quaisquer divergências..., colaborar nas leis que a tornem mais rapidamente e mais eficazmente operativa''.

Não se pode deixar de destacar que os instantes de ruptura em nosso processo político decorreram do distanciamento entre a condução autoritária do Estado e as aspirações democráticas da sociedade, só satisfeitas quando o poder se reconcilia com a nação. A Aliança Democrática, pactuada há 20 anos, é bem a expressão desse querer coletivo. Afonso Arinos dela participou ativamente desde o processo de mobilização para a Nova República, expressão por ele cunhada para definir a plataforma do novo governo.

Na madrugada de 15 de março de 1985, sobreveio o anticlímax do processo político: a imprevista hospitalização de Tancredo Neves, causando perplexidade ao país e parecendo frustrar, na 25ª hora, os sonhos do grande projeto que unira a nação.

Tornou-se indispensável agir rapidamente. Era essencial a iniciativa de não interromper o curso da legalidade. Uma vez mais, o mestre Afonso Arinos, com sua autoridade moral e na condição de duas vezes professor de Direito Constitucional, apontou a solução, invocando o Artigo 77 da Constituição então em vigor, encerrando as divergências que pudessem ser suscitadas, garantindo a posse do vice-presidente José Sarney.

É útil à nação recordar episódios da exemplar vida de Arinos que realçam a sua presença na consolidação da democracia no tecido social brasileiro.

Em tese, defendida na década de 50, intitulada ''História e teoria dos partidos políticos no Brasil'', Arinos sustenta não ser possível a democracia sem a existência de partidos políticos e conclui: ''Manter a democracia significa, pois, para o Brasil, cultivar e robustecer a instituição dos partidos. (...) Todo o brasileiro consciente tem o direito de se integrar a um partido, como prova da aquisição de uma verdadeira cidadania. O partido é o lar cívico''.

Em 1947, votou contra o projeto de cassação dos parlamentares do então Partido Comunista Brasileiro. Igual conduta adotou em 1957, por ocasião da tentativa de cassar o mandato de Carlos Lacerda.

A Lei Afonso Arinos, dos idos de 1951, contra o preconceito racial, paradigma a inspirar iniciativas semelhantes em todo o país, é também medida que concorre para a consolidação de uma sociedade multirracial. Sobre Arinos, afirmou o ministro e seu colega na Câmara , Aliomar Baleeiro: a ele ''caberia a divisa latina 'E plurimus unum', tal a versatibilidade de aptidões e de talentos dentro da unidade monolítica de seu espírito''.

Tudo nos conduz, portanto, a situá-lo como um ente dotado do dom da sabedoria: a um só tempo telúrico, posto que se considerava ''três cruzes brasileiro'', e universal pela sua condição de pensador; telúrico não mero provinciano, universal, não um cosmopolita que se julga cidadão de todo o mundo.