Título: Guerreiro nas relações Brasil-Argentina
Autor: Roberto Abdenur
Fonte: Jornal do Brasil, 21/12/2005, Outras Opiniões, p. A13

Como veterano servidor do Itamaraty, acompanhei com grande satisfação o recente encontro entre os presidentes Lula e Kirchner para celebrar os 20 anos da assinatura da Declaração de Iguaçu, que marcou a abertura de toda uma nova trajetória nas relações Brasil-Argentina, graças à visão de estadista dos presidentes Sarney e Alfonsin.

Ao contemplar a presente celebração, vêm-me à lembrança fatos de um passado mais remoto que constituíram antecedentes importantes dos logros agora celebrados. Entre meados de 1975 e o início de 1985 tive o privilégio de trabalhar no Itamaraty sob a chefia do embaixador Ramiro Saraiva Guerreiro.

Ocupou ele inicialmente a posição de Secretário-Geral do Ministério, durante o governo Geisel, na gestão do saudoso chanceler Antônio Azeredo da Silveira, período durante o qual fizeram-se importantes correções de rumo na política externa brasileira. Pude testemunhar o quanto esteve Saraiva Guerreiro sempre ao lado de Silveira em por vezes difíceis momentos.

Muito contribuiu ele também para os esforços empreendidos por Silveira para pôr termo às graves divergências que durante muitos anos haviam gerado clima de tensão e de desconfiança entre o Brasil e a Argentina, a propósito da construção do projeto comum paraguaio-brasileiro da usina de Itaipu. Embora logrando avanços nas negociações sobre Itaipu, não chegaria Silveira a levá-las a bom termo. Tocaria a Guerreiro, feito chanceler no governo Figueiredo, inaugurado em março de 1979, resgatar as negociações. Ao final de 1979, ao cabo de delicado e complexo processo negociador, envolvendo também, naturalmente, a parte paraguaia, logrou ele, em feito diplomático extraordinário, solução definitiva para um litígio que poderia ter causado deterioração de conseqüências imprevisíveis no relacionamento brasileiro-argentino.

Superado aquele obstáculo, percebeu desde logo Guerreiro que o encaminhamento da disputa em torno de Itaipu deveria ser prontamente aproveitado para o início da criação de sólidos laços de confiança entre os dois países, inclusive na então sensível área dos usos da energia nuclear. Já em 1980, procedeu-se à negociação do primeiro acordo de cooperação nesse setor, e tiveram início conversações preliminares que alguns anos mais tarde, durante os governos democráticos de Sarney e de Alfonsín, viriam a florescer sob a forma de medidas ainda mais abrangentes mediante a aplicação de inspeções recíprocas a instalações nucleares dos dois países.

Em 1982, ao eclodir o conflito bélico entre a Argentina e o Reino Unido nas ilhas Malvinas, tratou Guerreiro de mobilizar a diplomacia brasileira em intenso esforço de apoio à nação argentina em diferentes cenários internacionais. O Brasil não endossou a aventura militar empreendida pela ditadura argentina, mas sim agiu para reiterar nossa solidariedade histórica à legítima reivindicação da nação argentina de soberania sobre as ilhas, e para buscar melhor acomodar os interesses daquele país em importantes deliberações em foros internacionais, como na OEA e na ONU. Mais adiante, viriam a apresentar-se novas possibilidades de entendimento, de cooperação e de atuação conjunta entre os dois países.

Durante a crise da dívida que sacudiu toda a América Latina após a moratória mexicana de 1982, o Itamaraty e o San Martin, a chancelaria argentina, trabalharam juntos na constituição do então chamado ''Consenso de Cartagena'', que congregou os países da região em esforço de pressão sobre os países credores com vistas à obtenção de uma abordagem mais flexiva e construtiva para situação que tolhia seriamente as perspectivas de desenvolvimento da maior parte da América Latina. Em paralelo, deram os dois governos passos iniciais com vistas ao estímulo do comércio bilateral em termos de um equilíbrio dinâmico que contribuísse para a industrialização, em bases equânimes, das duas economias.

Esses novos passos se deram no último ano do governo Figueiredo, que coincidiria com a retomada da democracia na Argentina, sob a liderança do então recém-eleito presidente Raul Alfonsín. O extraordinário patrimônio acumulado nas últimas duas décadas constitui motivo de satisfação e mesmo de orgulho para os dois povos, que vêm dando ao mundo raros exemplos de confraternização, no sentido mais amplo e rico do termo: a criação de um verdadeiro sentimento de irmandade. Como outros diplomatas brasileiros, regozijo-me amplamente com o espetáculo das relações Brasil-Argentina. Saúdo do fundo do coração os feitos históricos dos presidentes José Sarney e Raul Alfonsín, e as realizações mais recentes, no que diz respeito ao lado brasileiro, por parte dos governos Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

Mas desejo aqui prestar homenagem especial à decisiva contribuição dada ao relacionamento entre as duas nações, um quarto de século atrás, por um dos maiores nomes da diplomacia brasileira nas últimas décadas - o de Ramiro Saraiva Guerreiro. Interessante paradoxo: uma pessoa de sobrenome Guerreiro que tanto fez, em tempos difíceis e conturbados, para lançar as sementes da parceria estratégica que hoje une cada vez mais nossas duas grandes nações.