O Estado de S. Paulo, n. 47867, 06/11/2024. Internacional, p. A16

Trump esvaziará debate sobre questão ambiental, que Brasil quer liderar

Gabriel Gateno

 

 

Países calculam os próximos passos em um mundo com Donald Trump novamente como presidente da maior potência. E o Brasil não é diferente. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou publicamente, na semana passada, que preferia uma vitória da vice-presidente, Kamala Harris. "É muito mais seguro para a gente fortalecer a democracia nos EUA", afirmou Lula, em entrevista ao canal de TV francês TF1.

"Vimos o que foi o presidente Trump, no final do seu mandato, fazendo aquele ataque ao Capitólio, uma coisa que era impensável de acontecer nos EUA, porque os EUA se apresentavam ao mundo como um modelo de democracia. Esse modelo ruiu", disse. Quando o candidato democrata era o presidente Joe Biden, que desistiu da disputa em julho, Lula também havia sinalizado que ele era o seu preferido na disputa. Após a vitória projetada de Trump ontem, o ex-presidente Jair Bolsonaro parabenizou o republicano em uma postagem no X e agradeceu "a Deus" por sua vitória.

TARIFAS. Para Vitelio Brustolin, pesquisador da Universidade Harvard e professor de relações internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), a vitória de Trump tende a esvaziar a discussão da questão climática, um dos temas em que o Brasil consegue se destacar mundialmente. O republicano retirou os EUA do Acordo de Paris, em 2017, por considerar que os termos não eram justos. O governo americano se reintegrou aos tratados quando Biden foi eleito presidente. "Trump nega as mudanças climáticas. Se os EUA saírem novamente do Acordo de Paris, esta medida teria um efeito negativo para o Brasil, que vai sediar a COP-30 em Belém, no ano que vem", aponta o pesquisador de Harvard. Com Trump, é certo que a palavra tarifa fará parte do nosso cotidiano. O republicano já declarou se tratar de sua palavra preferida no dicionário e o Brasil sentirá impacto, caso as prometidas medidas protecionistas americanas sejam implementadas em um novo governo.

"Trump fará de tudo para priorizar a indústria americana e fazer com que empresas voltem para lá. O Brasil faz parte disso", diz a professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Cristina Pecequillo. "Existem setores econômicos brasileiros que competem com os setores econômicos americanos, como é o caso do agronegócio." Pressões relacionadas à China também devem continuar com Trump. O republicano se envolveu em uma guerra comercial com Pequim em seu primeiro mandato. O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro foi pressionado por Trump e Biden sobre o uso de equipamentos da empresa chinesa Huawei na rede de telecomunicações 5G do Brasil. "O Brasil precisa se conscientizar que, com Trump, ο governo precisará navegar em águas mais turvas", avalia Pecequillo. Apesar de uma possível tensão por causa da relação com a China, Washington não deve ter uma contrapartida para oferecer ao Brasil. "Os EUA não têm um plano de investimentos para o Brasil, nem para a América Latina. Brasília precisa do investimento de Pequim."

SANÇÕES. O governo Trump também poderia punir posicionamentos brasileiros em política externa. Lula já questionou a hegemonia do dólar nas relações comerciais mundiais. A iniciativa interessa a países do Brics, como Rússia e China. O presidente brasileiro tenta se colocar como líder do chamado Sul Global. Durante uma visita a Pequim, em abril de 2023, Lula criticou duramente a hegemonia da moeda americana. "Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado na nossa moeda? Por que não temos o compromisso de inovar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda, depois que desapareceu o ouro, como paridade?", questionou. Países que defendem uma desdolarização do sistema financeiro internacional podem sofrer algum tipo de retaliação, opina Brustolin. "Vemos claramente que o governo Lula prefere se alinhar a países do Brics, como China e Rússia, do que com os Estados Unidos."

RELAÇÃO COM DEMOCRATAS. A relação entre Lula e Biden é considerada boa, mas rendeu poucos frutos. "Os dois têm uma convergência pessoal entre temas que são importantes para eles, como a questão do meio ambiente e direitos trabalhistas. Mas, na prática, a dinâmica foi diferente", lembra Pecequillo. Em setembro de 2023, Lula e Biden lançaram a chamada Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores, para promover o trabalho digno e fomentar um desenvolvimento "inclusivo, sustentável e amplamente compartilhado com todos os trabalhadores", segundo uma nota do Ministério do Trabalho e Emprego. Mas a iniciativa foi considerada tímida por analistas. "Brasil e EUA não aproveitaram em termos práticos este relacionamento entre Lula e Biden", avalia Brustolin. "Simplesmente não vimos resultado."

SEM CONSENSO. Brasília e Washington não concordaram sobre as cifras que os EUA enviariam para o Fundo Amazônia e os americanos também se opuseram aos posicionamentos geopolíticos do Brasil sobre a guerra na Ucrânia e sobre o conflito de Israel com o Hamas, em Gaza, e com o Hezbollah, no Líbano. Enquanto os EUA são os principais aliados de Ucrânia e Israel, Lula já se envolveu em diversas polêmicas por declarações sobre os conflitos na Europa e no Oriente Médio. Os EUA também são contrários a uma maior aproximação do Brasil com a China, principal parceira comercial do País. Essa posição deve se manter independentemente do próximo presidente. Em um evento realizado pela Bloomberg em São Paulo, no dia 23 de outubro, a representante de comércio dos EUA, Katherine Tai, afirmou que Brasília deveria considerar os riscos de aderir à chamada Nova Rota da Seda, projeto de investimentos de Pequim.

ALIANÇA. Lula já afirmou que considera aderir à iniciativa. A Embaixada da China em Brasília criticou as declarações da americana. "Tal ato carece de respeito ao Brasil, um país soberano, e despreza o fato de que a cooperação sino-brasileira é igual e mutuamente benéfica", afirmou o corpo consular, em comunicado. Apesar das divergências, o momento é de respeito mútuo entre Brasil e EUA e as relações entre os dois países são sólidas, segundo a professora da Unifesp. "Os países completaram 200 anos de relações diplomáticas e o chanceler Mauro Vieira já declarou que, independentemente do presidente, é uma relação estrutural para a diplomacia brasileira."