Título: A porta do inferno
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 23/12/2005, País, p. A2

Dizem os jornais que as elites não admitem a eleição de José Serra, e já escolheram Geraldo Alkmin seu candidato. Sem tomar partido na disputa entre os dois, podemos entender agora as dificuldades de Serra na campanha presidencial passada. O mercado, ao admitir Lula, não pensava no metalúrgico, mas fazia o jogo de Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente, impedido de disputar o terceiro mandato consecutivo, não se empenhou na campanha do candidato oficial, o que não chega a ser novidade na política brasileira. Seu objetivo, segundo confidenciaram alguns de seus amigos, era o de retornar em 2006, para só deixar o governo em 2014, quando terá 83 anos. Não é idade demasiada e a ultrapassaram, e muito, com plena lucidez, grandes criadores, como foi o caso de Picasso e Pablo Casals, sem falar em nosso conterrâneo Oscar Niemeyer que, com o cansaço de seus olhos aos 98 anos, parece iluminado por um sol interior e está a cada dia mais criativo do que antes, como se pode ver em seus últimos projetos. É também o caso de conhecidos pensadores, na direita ou na esquerda, como os brasileiros Barbosa Lima Sobrinho e Eugênio Gudin, que ultrapassaram os 100 anos com a mente ativa.

A aspiração de retorno estava dentro do projeto de universalização do poder, sob a hegemonia de Washington, que, vale sempre recordar, o então presidente saudara como novo Renascimento. Fernando Henrique temia Serra, mais do que o mercado pudesse temer Luiz Inácio. Com Serra no poder, e mantido o instituto da reeleição, o horizonte de 2006, previsto para o retorno, passava a ser o de 2014. Ora, 12 anos no sereno, em país de memória curta, são demais para manter um nome no mercado da política.

Fernando Henrique estava certo de que Serra seria - como continua sendo, segundo José Dirceu - muito independente. O ex-presidente da UNE tem origem de classe na parcela de trabalhadores imigrantes de São Paulo, e, assim, é visto a certa distância pelos quatrocentões e seus agregados. É notória sua militância na esquerda no tempo em que Lula, conforme ele mesmo revela, via os fatos políticos com indiferença. O líder sindical afirma que nunca foi de esquerda. José Serra não pode dizer o mesmo.

Calculou mal também Fernando Henrique quando pensou que o governo Lula seria o caos. Em todos os aspectos, ele está sendo muito melhor do que o de seu antecessor - até mesmo no controle ético do governo, como se saberá um dia, se um dia os arquivos do Banco Central forem de domínio público, e as vítimas do Edifício Negro puderem ter acesso a seus documentos e registros secretos. Um dos que gostariam de conhecer tais papéis é José Eduardo de Andrade Vieira, que perdeu seu banco, o Bamerindus, na calada da noite, em negociação clandestina de Pedro Malan com o HSBC em Londres. Mas, se os documentos sigilosos da repressão policial durante o governo militar podem ser vistos pelos legitimamente interessados, isso dificilmente ocorrerá no caso dos negócios conduzidos pelo Banco Central. Entre esses negócios nebulosos se destacam os das privatizações do sistema telefônico e dos bancos oficiais, quando seus quadros se reuniram aos do BNDES, na ação conjunta que conduziu a entrega dos ativos nacionais aos consórcios privados, constituídos pela associação de grupos nacionais aos estrangeiros - quando perdemos em patrimônio e em soberania.

No anunciado temor a Serra há, novamente, o interesse do ex-presidente. Ele joga com a possibilidade de vir a ser o tertius na disputa interna do PSDB. Ainda não entendeu que o mundo começou a mudar há quatro anos, quando desabaram as torres do World Trade Center. Desde então os velhos políticos estão sendo rejeitados no mundo inteiro.

Em 1947, diante da Guerra Fria, Milton Campos disse que o mundo aspirava por uma terceira porta. Mas a porta que abriram com a queda do Muro de Berlim, a do neoliberalismo, não dá acesso à paz. Até agora, na soleira do futuro, só podemos perceber as chamas e as sombras do inferno, que nos chegam todos os dias de Bagdá e seus arredores. Isso sem falar na Colômbia, que está ali mesmo.