Correio Braziliense, n. 22553, 16/12/2024. Política, p. 2

Ocultação de cadáver pode ficar fora de lei



O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino abriu caminho, neste domingo(15/12), para que o tribunal avalie se a Lei da Anistia pode ou não ser aplicada em crimes como a ocultação de cadáveres, cometidos durante a ditadura militar (1964-1985). A decisão pode ter impacto direto em todos os casos dessa natureza que permanecem em aberto.

O debate foi reaberto em um recurso apresentado pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o arquivamento de uma denúncia de 2015. À época, o MPF buscava a responsabilização de Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura, ambos tenentes-coronéis do Exército Brasileiro, por homicídio qualificado e ocultação de cadáveres durante a Guerrilha do Araguaia. O caso não avançou sob a justificativa da validade da Lei de Anistia, que abrange crimes políticos e conexos ocorridos entre 1961 e 1979.

Com a morte de Sebastião Curió em 2022, o processo seguiu apenas em relação a Lício Maciel. Agora, sob relatoria do ministro Dino, o STF deverá definir se crimes considerados permanentes, como a ocultação de cadáveres, podem escapar à aplicação da anistia.

Na decisão, emitida neste domingo (15), Dino esclareceu que o debate não envolve a revisão da Lei de Anistia, mas, sim, a interpretação de sua validade diante de crimes que se estendem no tempo. Segundo o ministro, como a ocultação de cadáveres configura crime permanente, a conduta se mantém ativa enquanto o paradeiro das vítimas permanece desconhecido. O ministro reforçou que a ocultação de cadáveres transcende o ato físico inicial, pois impede que familiares exerçam o direito ao luto e configura flagrante contínuo.

Dino mencionou o impacto do desaparecimento forçado na história do país, citando o caso de Rubens Paiva, cujo corpo nunca foi localizado. O ministro trouxe ainda uma referência cultural ao mencionar o filme Ainda Estou Aqui, que retrata a busca incansável de famílias por respostas. "A dor imprescritível de mães como Zuzu Angel, que procurou obstinadamente pelo filho, sublinha o direito inalienável das famílias de encontrarem seus desaparecidos e exercerem o luto”, afirmou Dino.

O julgamento da tese deve ser levado ao Plenário do STF em breve, onde os ministros decidirão sobre o alcance da Lei de Anistia em crimes permanentes, como a ocultação de cadáveres.

Anistia liberou torturadores

A Lei da Anistia (Lei 6.683) foi sancionada pelo último presidente da ditadura militar, o general João Batista Figueiredo, em 28 de agosto de 1979. Em junho daquele ano, o Palácio do Planalto encaminhou um projeto ao Congresso que excluía os adversários do regime militar acusados de atentados terroristas e assassinatos, mas favorecia integrantes dos órgãos de repressão envolvidos com a tortura e os deixava fora do alcance de julgamentos. Em 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil impetrou uma ação no Supremo Tribunal Federal solicitando a reanálise da lei. Mas parecer do então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, foi contrário à reavaliação. Em 29 de abril de 2010, o STF rejeitou o pedido da OAB, por 7x2. A argumentação principal: não ferir “os pactos que conduziram o Brasil à democracia”.

Frase

“A dor imprescritível de mães como Zuzu Angel, que procurou obstinadamente pelo filho [Stuart Angel Jones, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro/ MR8], sublinha o direito inalienável das famílias de encontrarem seus desaparecidos e exercerem o luto”

Trecho do voto do ministro Flávio Dino, do STF