O Estado de S. Paulo, n. 47878, 17/11/2024. Economia &
Negócios, p. B1
Desemprego cai e renda sobe, mas calote explode no Brasil
Márcia De Chiara
Mesmo
com o desemprego em baixa e renda em alta, mais brasileiros não estão
conseguindo pagar as contas em dia. Em outubro, pelo segundo mês seguido, o
número de inadimplentes cresceu. Havia no País 73,1 milhões de pessoas que não
quitaram seus compromissos. Essa é a segunda maior marca de inadimplentes da
série histórica iniciada em 2016. Só perde para o pico registrado em abril
deste ano, que atingiu 73,4 milhões, apontam dados da Serasa, empresa
especializada em informações financeiras, obtidos com exclusividade pelo
Estadão.
O
aumento da taxa básica de juros a partir de setembro deste ano, a escalada da
inflação de alimentos, puxada pela carne bovina nos últimos meses, e o
redirecionamento do consumo das famílias de produtos para serviços (entre eles
os jogos eletrônicos, as bets) são fatores que têm
corroído o orçamento das famílias e dificultado o pagamento dos débitos no
prazo, segundo economistas.
“Independente do indicador utilizado, sejam dívidas em
atraso, seja a capacidade de pagamento, houve uma tendência de alta da
inadimplência no curto prazo”, afirma o economista da Confederação Nacional do
Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Fabio Bentes.
A
piora do calote, por exemplo, diz ele, aparece em vários indicadores da CNC. Em
fevereiro deste ano, 28,1% das famílias estavam com contas em atraso e esse
índice subiu para 29,3% em outubro. Também a fatia das famílias que não
conseguirão pagar as dívidas vencidas subiu no curto prazo: era 11,9% em julho
deste ano e aumentou para 12,6% no mês passado.
Além
disso, o porcentual de famílias com dívidas pendentes há mais de 90 dias
avançou em outubro ante setembro e atingiu mais da metade (50,4%) do total de
endividados. Foi o maior resultado desde fevereiro de 2018, aponta a CNC.
Cartão
parcelado é vilão
Dados
do Banco Central (BC) reforçam a virada a partir do segundo semestre deste ano
da inadimplência dos créditos com recursos livres e vencidos acima de 90 dias.
Em junho, esse indicador de inadimplência estava era 5,48% dos créditos a
receber e encerrou setembro – último dado disponível – em 5,62%.
O
vilão do calote foi o cartão de crédito parcelado, cuja inadimplência acima de
90 dias atingiu 11,89% em setembro, segundo dados do BC. É a maior taxa desde o
início da série em março de 2011. “As famílias estão penduradas no crédito mais
fácil, no cartão parcelado, onde o critério (de concessão) é frouxo”, observa o
economista.
Luiz
Rabi, economista da Serasa, compara a situação atual da inadimplência a um
paciente internado numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “É um caso grave,
preocupante, mas administrável”, avalia.
Em
quase três anos, o número de inadimplentes no País aumentou cerca 11 milhões, o
equivalente à população da cidade de São Paulo. O nível atual de 73,1 milhões
de inadimplentes é elevado, mas estável. “O elevador subiu para 20º andar e lá
ficou”, compara.
Essa
estabilidade em níveis elevados é resultado, segundo o economista, de duas
forças agindo em sentidos opostos. Enquanto o desemprego baixo e a renda em
recuperação puxam a inadimplência para baixo, a alta dos juros e da inflação
empurram o calote para cima.
Com
a entrada do pagamento do 13º salário e as campanhas de renegociação de
dívidas, a perspectiva é de que ocorra algum recuo da inadimplência em novembro
e dezembro. Por isso, as vendas por ocasião da Black Friday, marcada para a
última sexta-feira de novembro, 29, e do Natal não devem ser afetadas pelo
calote.
Luz
amarela
A
grande incógnita, no entanto, é o que deve acontecer com a inadimplência no ano
que vem. Para Bentes, o amortecedor da crise orçamentária das famílias, isto é,
o nível de emprego, não tem mais para onde evoluir.
“Estamos
imaginando uma desaceleração para economia para 2025 e, provavelmente, o
desemprego vai subir”, diz Rabi. Ele acrescenta que não se sabe ao certo quanto
tempo levará para inflação começar a recuar, apesar da certeza de que o juro
continuará aumentando.
Além
disso, frisa que a conjuntura depende do impacto do pacote fiscal que
está sendo costurado pelo governo. “Se for um pacote fiscal fraco, o dólar
continuará subindo, o juro e a inflação também. Daí, pode-se começar a falar em
recessão, não apenas em desaceleração da economia, com agravamento mais sério
da inadimplência em 2025.”
Bentes
pondera que a situação atual do calote não se trata de um caso extremo. “Não
estamos caminhando a passos largos para o abismo.” Ele observa, no entanto, que
é uma situação menos confortável e que soou um sinal de alerta, uma luz
amarela.
Existe
uma questão conjuntural que afeta a inadimplência por conta de fatores como
taxa de juros, inflação, desemprego, renda e câmbio. Mas há também, segundo
Bentes, mudanças estruturais nas despesas das famílias, com aumento da
participação dos serviços nos gastos.
Em
2012, por exemplo, os serviços respondiam por cerca de um terço do orçamento
familiar, de acordo com dados do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente essa fatia
subiu para 48% e quase empata com gastos com produtos (52%).
Isso
explica, segundo Bentes, porque o comércio não está conseguindo se sair tão bem
quanto poderia num ano no qual a taxa de desemprego, de 6,4% no trimestre
encerrado em setembro é a menor da série histórica do IBGE, iniciada em 2012, e
a massa de rendimentos tem alta real (descontada
a inflação) de 7%.
Em
relação às bets, o economista diz que é difícil
calcular, com números, o efeito nas vendas e na inadimplência. “Mas eu sustento
que as casas de apostas estão roubando parte da capacidade de consumo de bens
da população.”
Renegociação
de dívidas
Um
dado que chama atenção na radiografia da inadimplência de outubro feita pela
Serasa é que em sete unidades da federação a fatia de inadimplentes respondeu
por mais da metade da população adulta. Esse resultado supera a média do País,
que é de 44%.
Segundo
Thiago Ramos, coordenador da Serasa, essa marca quase dobrou em um ano, um
sinal, segundo ele, de agravamento da inadimplência. Em outubro de 2023, apenas
quatro Estados tinham mais da metade da população adulta inadimplente.
Quem
liderou o ranking de outubro deste ano foi o Amapá, com 60,8% da população
adulta inadimplente, seguido pelo Distrito Federal (57,8%), Rio de Janeiro
(54,6%), Amazonas (53,3%), Mato Grosso do Sul (51,5%), Mato Grosso (50,4%) e
Roraima (50,06%). “54,6% da população adulta do Rio de Janeiro inadimplente é
muita gente, é um mercado consumidor muito grande”, diz Ramos.
Exatamente
para trazer parte desses consumidores de volta às compras que, em 28 de
outubro, começou o Feirão Limpa Nome da Serasa. O evento vai até o dia 29 de
novembro e reúne mais de mil empresas entre varejistas, bancos, financeiras,
fintechs e prestadores de serviços, como energia elétrica, água e gás.
Neste
ano o feirão terá três frentes. As dívidas com pagamentos atrasados poderão ser
negociadas online por meio de aplicativos instalados no smartphone ou pelo site
da Serasa, acessado pelo computador.
Presencialmente,
mas com o uso da internet, o feirão está nas mais de 7 mil agências dos
Correios espalhadas pelo País. O objetivo é que os funcionários dos Correios
ajudem gratuitamente na negociação as pessoas que não tenham acesso à internet
ou não saibam manusear o celular.
Também
haverá um evento presencial em São Paulo, marcado para ocorrer entre os dias 19
e 23 de novembro, inclusive no feriado do dia 20, no Largo da Batata, em
Pinheiros. No local, os inadimplentes poderão negociar diretamente com as
empresas credoras.
Limpar
o nome e voltar às compras
Faz
quase um ano que o pedreiro autônomo Jilvan Ribeiro
da Silva, de 56 anos, casado e pai de duas filhas, deixou de pagar o boleto do
cartão do supermercado. Ele ficou inadimplente porque quebrou braço e não pode
trabalhar.
Com
a volta à atividade, Silva tem um dinheiro extra para receber. Ele quer quitar
a dívida com o supermercado que, nas suas contas, era de cerca de R$ 800 quando
deixou de pagar a fatura. A intenção é limpar o nome para comprar materiais de
construção, a fim de erguer a casa própria. “A vida está mais apertada, mas eu
limpando o nome já fica melhor.”
O
pedreiro cita como aperto a alta do preço da carne, que passou a ser menos
frequente na refeição da família.” No dia que não dá para comer carne, a gente
come verdura e está de bom tamanho.”
Inadimplente
desde a época da pandemia quando ficou desempregado, Adriano Vicente de
Oliveira, 49 anos, voltou a trabalhar como auxiliar de limpeza. Ele é outro que
quer renegociar a dívida que acumula por conta da compra de um celular.
Ele
também sente o peso hoje da inflação dos alimentos. Conta que tem optado pelo
frango e pelo ovo no lugar da carne bovina por causa do preço elevado.
Apesar
dos apertos, Oliveira quer limpar o nome para se preparar para receber a filha
que vai nascer no ano que vem. Ele quer estar apto a pegar um crédito para
comprar carrinho, remédio, fralda, por exemplo. “Eles estão falando de 99% de
desconto da dívida no discurso. Deus ajude que sim”, diz o auxiliar de limpeza.
De
acordo com Thiago Ramos, coordenador da Serasa, no feirão deste ano, 9,3
milhões de dívidas estão com descontos de 99%. “Os descontos neste ano estão
mais favoráveis porque temos mais dívidas com esse abatimento.”
Na
prática, oferecendo abatimentos dessa magnitude, os credores recuperaram uma
parcela muito pequena da dívida. Mas o objetivo principal é ter o consumidor de
volta às compras, como o pedreiro Silva e o auxiliar de limpeza Oliveira.
Um
diferencial do feirão deste ano é o “carrinho de dívidas”, diz Ramos. Isto é, o
consumidor pode renegociar mais de uma dívida e pagar todas por meio de um
único boleto, com o mesmo prazo de parcelamento, que vai 72 meses ou seis anos.
Desde
o início do feirão em dia 28 de novembro até o último dia 13 pela manhã, 2,899
milhões de dívidas tinham sido renegociadas no evento, um pouco mais de 1% do
total.