O Estado de S. Paulo, n. 47880, 19/11/2024. Internacional, p. A9
Para alcançar consenso, G-20 evita criticar papel de Rússia e Israel em guerras
Beatriz Bulla
Felipe Frazão
Carolina Marins
Lula situou à sua direita o indiano Modi, e à esquerda o sul-africano Ramaphosa e o chinês Xi, os três do Brics; atrasado, Biden perdeu a foto
O grupo que representa as 20 maiores economias do mundo chegou a um consenso ontem para uma declaração conjunta em seu encontro no Rio. Isso só foi possível porque o texto não opina sobre o papel de Rússia e Israel nas guerras em que são protagonistas. Nações do G-7 pressionavam por uma condenação a Moscou na invasão da Ucrânia, mas só conseguiram manter no texto o termo “guerra” para classificar o conflito. Na véspera, o presidente dos EUA, Joe Biden, autorizou o uso de mísseis americanos mais potentes contra o território russo – Moscou prometeu ontem retaliar caso isso ocorra. Com relação ao conflito entre Israel e Hamas, o G-20 atendeu a pedido de países emergentes para reforçar a preocupação com “a situação humanitária catastrófica na Faixa de Gaza e a escalada no Líbano”. Uma defesa da taxação dos mais ricos foi incluída.
O G-20 chegou ontem a uma declaração conjunta, embora houvesse divergência entre as nações sobre como abordar as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio. A saída para chegar a um texto de consenso foi não fazer condenações à Rússia e a Israel. A ameaça do presidente da Argentina, Javier Milei, de não assinar o texto não se concretizou – ele fez apenas objeções verbais.
Países do G-7 pressionavam por uma reprovação a Moscou. Conseguiram que fosse incluída a palavra “guerra” no texto para designar o conflito. Eles retomaram a linguagem usada no comunicado do G-20 do ano passado, na Índia, que usou o termo e já poupava Moscou.
Ontem, os países concordaram com duas alterações, em relação ao que foi acertado por diplomatas nos últimos dias.
“Os EUA apoiam a soberania da Ucrânia e sua integridade territorial. Todos ao redor desta mesa deveriam fazê-lo também, em minha opinião”
Joe Biden Presidente dos EUA
Após pressão dos europeus, eles incluíram uma condenação a ataques à “infraestrutura” de países, um reflexo dos bombardeios russos a instalações de energia a Ucrânia, no domingo.
“Destacamos o sofrimento humano e os impactos negativos da guerra no que diz respeito à segurança alimentar e energética global, às cadeias de abastecimento, à estabilidade macrofinanceira, à inflação e ao crescimento”, afirma um trecho do documento, uma referência indireta à Ucrânia.
Com relação ao conflito entre Israel e Hamas, os países do G-20 aceitaram um pedido dos emergentes e incluíram manifestações de preocupação com a situação. “Expressando nossa profunda preocupação com a situação humanitária catastrófica na Faixa de Gaza e a escalada no Líbano, enfatizamos a necessidade urgente de expandir o fluxo de ajuda humanitária e reforçar a proteção dos civis e exigir a eliminação de todas as barreiras à prestação de assistência humanitária em grande escala”, diz o texto.
GEOPOLÍTICA. O embate geopolítico marcou a abertura da cúpula, comandada por Luiz Inácio Lula da Silva no Museu de Arte Moderna do Rio, e acabou ofuscando o lançamento de uma aliança global contra a fome e a pobreza, bandeira da diplomacia do brasileiro.
Durante a maior parte do dia, o maior entrave à declaração final parecia ser de Milei, um crítico do multilateralismo. Na semana passada, o governo argentino foi o único a votar contra uma resolução da Assembleia-Geral da ONU sobre violência contra as mulheres.
Na cúpula do Rio, Milei abriu cinco frentes de embate durante a reta final de negociações do comunicado do G-20: multilateralismo, gênero, desenvolvimento sustentável, tributação de grandes fortunas, clima e meio ambiente. Ontem, ele rejeitou temas ligados ao desenvolvimento sustentável, a Agenda 2030 da ONU.
Mas no fim, o presidente da Argentina acabou cedendo e assinou – ainda que com algumas ressalvas – o texto final. Com isso, o maior empecilho ao consenso na declaração final acabou se tornando a posição de países europeus e americanos sobre as guerras na Ucrânia e em Gaza.
A pressão passou a vir então do grupo dos sete países mais ricos do mundo – EUA, Canadá, Alemanha, Itália, França, Reino Unido e Japão. Eles pretendiam que o Brasil reabrisse as negociações sobre o capítulo geopolítico do documento final para incluir uma condenação aos ataques da Rússia. Diplomatas europeus e americanos também não estariam satisfeitos com a forma como ficou a redação do trecho que trata sobre clima.
Por mais que a diplomacia brasileira tentasse colocar a fome e a pobreza no centro do debate, as guerras estavam no topo da agenda dos mais poderosos. O presidente dos EUA, Joe Biden, que vive seus últimos dias na Casa Branca, citou os conflitos na Ucrânia e de Israel contra o Hamas durante seu discurso.
“Os EUA apoiam a soberania da Ucrânia e sua integridade territorial. Todos ao redor desta mesa deveriam fazê-lo também, em minha opinião”, disse o americano, um dia depois de autorizar o governo ucraniano a usar mísseis de longo alcance para atacar alvos dentro do território russo (leia mais na página 12).
Biden também falou sobre Gaza. “Israel tem o direito de se defender depois do pior massacre de judeus desde o Holocausto. Mas a forma como se defende importa muito”, disse. “Vamos continuar pressionando para acelerar um acordo de cessar-fogo que garanta a segurança de Israel, resgate os reféns e termine o sofrimento de pessoas e crianças palestinas.”
GRANDES FORTUNAS. Um dos temas de oposição de Milei era a taxação dos mais ricos, embora a Argentina tenha assinado a declaração ministerial de julho sobre tributação progressiva. A declaração final no Rio, no entanto, endossou o texto dos ministros.
Como estava previsto, nesse ponto, não foi mencionado nenhum porcentual a ser tributado, apenas o princípio que rege a proposta apresentada pelo Brasil. “Com total respeito à soberania tributária, nós procuraremos nos envolver cooperativamente para garantir que indivíduos de patrimônio líquido ultra-alto sejam efetivamente tributados.”
ENCONTRO. Diante de tantas divergências, outro momento importante quase acabou sendo ofuscado: o primeiro encontro entre Lula e Milei. O aperto de mão entre os dois foi rápido, durou apenas 15 segundos, um contraste marcante com a recepção do brasileiro a outros líderes no MAM, principalmente Biden e o presidente da França, Emmanuel Macron. •