Valor Econômico, 18, 19 e 20/04/2020, Empresas, p. B7
Falta lei específica, mas é possível punir responsáveis
João Luiz Rosa
Quem dispara “fake news” costuma se sentir protegido pelo anonimato proporcionado pela internet. Mas, dependendo das circunstâncias, seus autores podem ser identificados e sofrer sanções legais. Isso é possível mesmo no aplicativo WhatsApp, no qual é mais difícil rastrear a origem dos boatos porque as mensagens são privadas - ocorrem entre indivíduos ou grupos e navegam protegidas por código.
No mês passado, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), entrou na Justiça contra uma mulher por causa de um áudio que “viralizou” em grupos de WhatsApp. Na mensagem, ela dizia que Doria teria lhe confessado estar mentindo sobre o número de casos de coronavírus, que seria muito maior que o então anunciado. “[...] Segunda-feira ele vai decretar toque de recolher [...] Então gente, compra comida. Pra hoje. Pra hoje. Porque não vai ter. Vai acabar. Os caminhoneiros não vão trabalhar”, dizia a mulher, que afirmava trabalhar com Doria. O áudio era acompanhado de uma foto dela ao lado do governador.
Segundo o inquérito policial, registrado na 4ª Delegacia de Polícia de São Paulo, especializada em crimes eletrônicos, a mulher reconheceu, em depoimento, que era tudo mentira e disse estar arrependida. Ela não trabalha com Doria. A foto foi tirada durante um evento público. O caso foi encaminhado ao Ministério Público.
“Se as ‘fake news’ trouxerem informação que possa causar pânico ou tumulto, isso é contravenção penal”, diz o criminalista Fernando José da Costa, que instaurou o inquérito em nome de Doria. Contravenções são infrações que recebem penas leves. No episódio envolvendo o governador, a contravenção prevista é provocar alarme ao anunciar perigo inexistente, explica o advogado. Trata-se do artigo 41 da Lei de Contravenções Penais, que prevê pena de prisão de 15 dias a 6 meses ou - o que é curioso - multa de duzentos mil réis a dois contos de réis. O anacronismo da moeda revela como a legislação é antiga: entrou em vigor em 1941, quase 80 anos atrás. Nesse tipo de caso, afirma Costa, o Ministério Público costuma propor acordo pelo qual o réu paga cestas básicas, presta serviços comunitários ou passa por um processo de reeducação.
A falta de regras específicas dificulta a tarefa de punir autores de notícias falsas e, dessa forma, coibir sua circulação. “Hoje, no Brasil, só existe punição para ‘fake news’ no âmbito eleitoral”, diz o advogado e economista Renato Opice Blum, do escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof. Em novembro do ano passado, foi promulgada a Lei 13.834/2019, que pune com dois a oito anos de prisão quem divulgar notícias falsas com finalidade eleitoral. “Falta, no entanto, uma lei para aplicação ordinária, no âmbito geral”, afirma o especialista.
Para preencher essa lacuna, o desafio é enquadrar a disseminação de notícias falsas nas leis existentes. Espalhar “fake news” sobre os produtos de uma empresa, dizendo que eles estão contaminados, pode ser passível de processo por calúnia ou difamação, por exemplo. No caso de bancos, uma campanha de difamação desse tipo pode ser considerada crime contra o sistema financeiro. Mas é difícil obter provas concretas e conduzir uma investigação desse tipo, observa Opice Blum.
No Brasil já existem precedentes legais para que administradores de grupos de WhatsApp sejam responsabilizados judicialmente por mensagens trocadas entre seus integrantes, diz a advogada Patricia Peck Pinheiro, do escritório Pires & Gonçalves Advogados Associados.
Em 2018, a 34ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a administradora de um desses grupos a pagar multa de R$ 3 mil por danos morais a uma pessoa que foi ofendida por terceiros em meio a conversas no aplicativo. A responsável pelo grupo não participou dos xingamentos, mas a Justiça considerou que ela não tomou nenhuma atitude para impedir o incidente e a puniu.
“O administrador tem o dever de, periodicamente, dar instruções ao grupo. E se algum participante fizer algo errado, cabe a ele tomar uma decisão”, diz Patricia. Frequentemente, para não se indispor com o grupo, as pessoas se calam diante de abusos ou exageros, afirma a perita, mas a orientação é alertar o administrador e pedir providências, incluindo notícias de origem duvidosa.