O Estado de S. Paulo, n. 47882, 21/11/2024. Política, p. A8

Presos por tramar golpe tinham rede com oficiais de alto escalão

Pepita Ortega
Fausto Macedo
Marcelo Godoy

 

 

Investigadores da PF encontraram mensagens, áudios e reuniões dos suspeitos com pelo menos 35 militares–entre eles dez generais e 16 coronéis do Exército e um almirante.

“Pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião. Tem que ser ele (Bolsonaro) e a rataria”

Coronel Reginaldo de Abreu, ao general Mário Fernandes, preso pela PF

A Operação Contragolpe, aberta pela Polícia Federal (PF) anteontem, não só levou à prisão de militares que planejaram a morte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de seu vice Geraldo Alckmin e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, mas também revelou uma extensa rede do alto escalão das Forças Armadas, com oficiais graduados que trocavam informações sobre o golpe. Os investigadores encontraram mensagens, indícios de reuniões, documentos e áudios com citações, em diferentes graus, a pelo menos 35 militares – entre eles dez generais e 16 coronéis do Exército, além de um almirante – durante a mais recente fase sobre a trama antidemocrática supostamente gestada no governo Jair Bolsonaro.

Núcleos

PF identificou três grupos de militares com diferentes papéis na trama golpista

O Estadão pediu via Comunicação do Exército e da Marinha manifestação dos militares citados no inquérito da PF, mas não havia obtido resposta até a noite de ontem. Em nota divulgada no dia da operação, o Exército afirmou que a Força “não se manifesta sobre processos em curso, conduzidos por outros órgãos, procedimento que tem pautado a relação de respeito do Exército Brasileiro com as demais instituições da República”. As defesas dos presos na operação não se manifestaram.

O alvo principal da ofensiva foi Mário Fernandes, ex-secretário executivo da Secretária-geral da Presidência na gestão Bolsonaro. A partir de seu celular, a PF encontrou conversas em que ele e colegas de farda reclamavam sobre o Alto Comando do Exército, dizendo que ele “tinha que acabar” e pregando: “Quatro linhas da Constituição é o cacete”. Os diálogos mostram a insatisfação de alguns militares com o fato de a cúpula do Exército não ter embarcado no plano para manter Bolsonaro após uma derrota nas urnas.

VERTENTES. Os nomes dos militares envolvidos direta ou indiretamente na trama golpista são dispostos ao longo da representação da PF dentro de três vertentes principais: os que dialogavam abertamente sobre o golpe, inclusive reclamando da demora do mesmo; os elencados como integrantes do hipotético Gabinete Institucional de Gestão da Crise que seria criado após a ruptura; e os integrantes do Núcleo de Oficiais de Alta Patente com Influência e Apoio de Outros Núcleos.

Este núcleo era composto por integrantes das Forças Armadas, que, segundo a PF, usavam “a alta patente militar que detinham” “para influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do Golpe de Estado”. (mais informações abaixo e na pág. A10).

Uma das conversas foi com o coronel Roberto Criscuoli, que, após o segundo turno, escreveu: “Mario, eu tava até conversando agora com o pessoal aqui, cara. Se nós não tomarmos a rédea agora, depois eu acho que vai ser pior. Na realidade vai ser guerra civil agora ou guerra civil depois. Só que a guerra civil agora tem uma justificativa, o povo tá na rua, nós temos aquele apoio maciço. Daqui a pouco nós vamos entrar numa guerra civil, porque daqui a alguns meses esse cara vai destruir o exército, vai destruir tudo”. Ao Estadão, coronel nega que tenha participado de planos para assassinar autoridades.

“Então eu acho que essa decisão tem que ser tomada urgente, cara. E o presidente não pode pagar pra ver também, cara. Ele vai destruir o nosso país, cara. Democrata é o cacete. Não tem que ser mais democrata mais agora. Ah, não vou sair das quatro linhas. Acabou o jogo, pô. Não tem mais quatro linhas. O povo na rua tá pedindo, pelo amor de Deus. Vai dar uma guerra civil? Vai dar. Eu tenho certeza que vai dar. Porque os vermelhos vão vir feroz. Mas nós estamos esperando o quê? Dando tempo pra eles se organizarem melhor? Pra guerra ser pior? Irmão, vamos agora. Fala com o 01 aí, cara”, seguiu.

INTERLOCUÇÃO. Outro interlocutor frequente do general – apontado pelo tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e delator) como um dos mais radicais do govero – é Reginaldo Vieira de Abreu. Foi com ele que Fernandes reclamou sobre o Alto Comando do Exército. E então Vieira de Abreu bradou: “O senhor me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o caralho. Quatro linhas da Constituição é o cacete. Nós estamos em guerra, eles estão vencendo, está quase acabando e eles não deram

Na realidade vai ser guerra civil agora ou (...) depois. Só que agora tem uma justificativa, o povo tá na rua, nós temos aquele apoio maciço.(...). Esse cara (Lula) vai destruir o exército, vai destruir tudo” Coronel Roberto Criscuoli Segundo relatório da PF

um tiro por incompetência nossa. Incompetência nossa, é isso”. Os diálogos mostram ainda o acesso que Fernandes tinha a pessoas próximas de Bolsonaro, como o Capitão Sergio Rocha Cordeiro, que era assessor da Presidência da República, e o coronel Marcelo Câmara, figuras que foram alvos de operações anteriores da PF. Em uma das mensagens, Fernandes enviou supostas provas que poderiam influenciar em decisões estratégicas, afirmou ter falado com o ministro da Justiça Anderson Torres e “expôs a preocupação de muita gente “jogar a toalha”, ou seja, desistir de seguir adiante com os intentos golpistas”. A PF diz que, aparentemente, a mensagem ficou sem resposta.

‘CAVEIRA’. Já com Câmara, que era chamado de Caveira por Fernandes, o general tratou do levantamento de informações para atacar as eleições e a urna eletrônica. “Força, Caveira! Ouça esses dois áudios aí. Ah, porra, será que isso já chegou para vocês? Ah, para o presidente? Porra, aquela proposta dele só falar no dia 16 que é... tem amparo legal”, declarou, no início de dezembro.

Cid também era um interlocutor de Fernandes. No dia em que foi realizada a reunião, com Bolsonaro e os chefes das Forças Armadas, para a apresentação da minuta do golpe que circulava entre bolsonaristas, o militar enviou o seguinte áudio ao hoje delator: “Cid, acho que você está tendo uma reunião importante aí agora no Alvorada. Pô, mostra esse vídeo pro comandante, cara. Se possível, transmite durante a reunião, porra. Isso é história. E a história é marcada por momentos como esse que nós estamos vivendo agora. Força.” Todos os citados em investigações anteriores da PF sempre negaram o cometimento de crimes.