O Estado de S. Paulo, n. 47884, 23/11/2024. Política, p. A8
Lista de indiciados por golpe une investigações que cercam Bolsonaro
Pepita Ortega
Alvos de operações da PF aparecem nas apurações em que o ex-presidente foi enquadrado criminalmente.
Com personagens que vão desde militares do alto escalão das Forças Armadas e da cúpula do governo Jair Bolsonaro (PL) a aliados e apoiadores das pautas do ex-presidente, a lista de indiciados pela Polícia Federal por golpe de Estado liga todas as grandes investigações que cercam, direta ou indiretamente, o ex-chefe do Executivo.
A relação de 37 indiciados do inquérito das operações Tempus Veritatis e Contragolpe, que inclui Bolsonaro e alguns de seus generais, contém nomes e forma uma teia envolvendo não apenas os inquéritos em que o ex-presidente foi enquadrado criminalmente – o caso das joias, o da fraude em carteiras de vacinação e o de tentativa de golpe de Estado –, mas também as apurações sobre o “gabinete do ódio”, as omissões e desinformação na pandemia, a “Abin Paralela”, os atos golpistas de 8 de janeiro e os ataques às urnas eletrônicas – estes últimos que levaram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a tornar Bolsonaro inelegível até 2030.
Nos inquéritos, os investigados negaram ilícitos e minimizaram suas ações. Em oitivas nas apurações, ficaram em silêncio. As defesas de alguns dos indiciados no inquérito do golpe – inclusive os advogados de Bolsonaro – sinalizaram que só vão comentar sobre as conclusões da PF quando tiverem acesso ao relatório final de 880 páginas da investigação.
Com o enquadramento da PF no inquérito do golpe, Bolsonaro chegou a seu terceiro indiciamento. Isso se repete apenas com outros dois nomes da lista dos 37 investigados aos quais a corporação imputa crimes de golpe de Estado, organização criminosa e abolição violenta do estado democrático de direito: dois exajudantes de ordens da Presidência. São eles o tenente-coronel Mauro Cid, hoje delator, e o coronel Marcelo Costa Câmara, nomes que também aparecem em outras apurações que cercam Bolsonaro.
No entanto, há outros expoentes na lista de indiciados da PF, entre eles dois ex-assessores de Bolsonaro que integraram o “gabinete do ódio”, revelado pelo Estadão: Filipe Martins e Tércio Arnaud Tomaz. O grupo adotava o tom ideológico e beligerante nas redes sociais da Presidência da República, despachando do terceiro andar do Palácio do Planalto desde o início do governo Bolsonaro.
MILÍCIAS DIGITAIS. Filipe e Tércio também são pontos de conexão em episódios de apuração sobre o governo Bolsonaro. Por exemplo, ambos foram indiciados pela CPI da Covid – investigação parlamentar sobre a conduta negacionista da gestão anterior ante a pandemia – por incitação ao crime. No Supremo Tribunal Federal (STF), a investigação sobre supostas omissões do governo Bolsonaro na pandemia estão no gabinete do ministro Gilmar Mendes, mas quem está na mira é Bolsonaro e o então alto escalão do Ministério da Saúde.
Fora isso, Tércio acompanhou de muito de perto o inquérito das milícias digitais, dentro do qual a investigação sobre a tentativa de golpe de Estado está inserida. O ex-assessor de Bolsonaro foi citado e prestou depoimento no inquérito quando ele ainda tinha o escopo de apurar atos antidemocráticos de 2020 – investigação que acabou arquivada e se desdobrou no inquérito das milícias digitais. Compartilham dessa mesma condição de Tércio dois aliados de primeira hora de Bolsonaro que até hoje estão foragidos da Justiça: os blogueiros Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio.
Tércio também foi alvo de uma das fases ostensivas da investigação sobre a Abin paralela montada no governo Bolsonaro para monitorar autoridades e opositores. Há ainda outros indiciados do inquérito do golpe que constam como alvos dessa apuração sobre uma suposta arapongagem clandestina: o subtenente do Exército Giancarlo Gomes Rodrigues, o policial federal Marcelo Bormevet e, principalmente, o ex-chefe da Abin Alexandre Ramagem.
A interseção entre a investigação da Abin Paralela e o gabinete do ódio se dá em razão do abastecimento pela estrutura clandestina do grupo que promovia ataques contra supostos opositores e adversários do ex-presidente. Um alvo da ofensiva não indiciado no inquérito do golpe foi Carlos Bolsonaro, filho 03 do ex-presidente, apontado como o líder do gabinete do ódio.
MINUTA E URNAS. Por sua vez, a Abin paralela – que, segundo a PF, sabia da minuta do golpe e pode ainda gerar investigações sobre corrupção – está ligada a uma das tônicas centrais do governo Bolsonaro. Isso porque a estrutura clandestina também produzia relatórios para abastecer ataques ao sistema eleitoral.
A alegação de fraude às urnas, central na administração anterior, tem conexão ainda com outros personagens da lista de indiciados por golpe de Estado, como o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, o engenheiro Carlos Cesar Moretzsohn Rocha (contratado pelo PL para questionar o resultado das eleições) e o empresário argentino Fernando Cerimedo (autor de live contra urnas eletrônicas).
Tais nomes se relacionam, em diferentes graus, à narrativa bolsonarista contra o sistema eleitoral brasileiro. Valdemar e Carlos, por exemplo, estão ligados à tentativa do expresidente de rever o resultado das eleições, que foi derrubada rapidamente pelo TSE.
As alegações sobre fraude nas urnas têm um papel central no inquérito do golpe, mas ainda são investigadas em um braço do inquérito das milícias digitais. Além disso, são pivô da decisão que tornou Bolsonaro inelegível até 2030 – o TSE entendeu que o ex-presidente usou do cargo para espalhar desinformação sobre o sistema eletrônico de votação, na tentativa de ter ganhos eleitorais, atacar a Corte e fazer “ameaças veladas”.
8 DE JANEIRO. Há ainda dois personagens da lista de indiciados do golpe que estabelecem um elo do caso com os atos golpista de 8 de janeiro de 2023 – quando apoiadores de Bolsonaro invadiram e depredaram a Praça dos Três Poderes, em especial o STF. Ainda não está claro se o relatório de mais de 800 páginas das operações Tempus Veritatis e Contragolpe já estabelece diretamente essa ligação, mas dois enquadrados pela PF indicam uma relação.
Trata-se do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e do general reformado Mário Fernandes. O primeiro era secretário de Segurança Pública do Distrito Federal quando radicais invadiram as sedes dos Poderes. Ele é um dos investigados principais no inquérito que apura a suposta omissão e conivência de autoridades com os atos golpistas. Quando a PF vasculhou a casa de Torres em tal inquérito, encontrou a minuta do golpe.
‘PONTO FOCAL’. Já Fernandes – que já havia sido citado na Tempus Veritatis em fevereiro e foi preso na Operação Contragolpe na terça-feira – é uma peça central no inquérito por ser apontado como o autor do plano de assassinato do ministro Alexandre de Moraes, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice Geraldo Alckmin, assim como da minuta do “gabinete de crise” que seria instalado após o golpe (mais informações na pág. A12).
Fernandes é considerado pelos investigadores como o “ponto focal” do governo Bolsonaro com golpistas – inclusive por manifestante investigada presa pela tentativa de invasão ao prédio da PF em Brasília em 12 de dezembro de 2022. Segundo a PF, há “fortes indícios” de que o general “promoveu ações de planejamento, coordenação e execução de atos antidemocráticos, com registros de frequência” ao acampamento em frente ao QG do Exército. •