Título: Que ¿novo¿ nasce da traição?
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 27/12/2005, Outras Opiniões, p. A13

O balanço do mandato presidencial petista, no final do seu terceiro ano, está trazendo surpresas desagradáveis a muita gente. Principalmente aos cientistas políticos que se aplicam na divulgação de textos denunciando supostas conspirações de direita contra o governo Lula.

Por declarações recentes de dois conhecedores das intimidades do Planalto, o adversário principal do grande capital, a ser barrado no baile do famigerado ''mercado'', não seria Lula mas, sim, José Serra. Pode haver cenário mais agradável para os endereços blindados da Avenida Paulista do que Lula à direita de Serra, na falsa dicotomia entre PT e PSDB, de 2006?

Vamos ao grão, recuperando frases e personagens da melódia, para comprovar o que até bem pouco tempo seria inimaginável.

No seu último jantar com emergentes sociais do Rio de Janeiro, o deputado cassado José Dirceu de Oliveira e Silva, ex-ministro todo poderoso, foi peremptório: ''Vocês acham que o establishment, o sistema, a Fiesp, a Febraban e a elite vão deixar o Serra ser presidente? Já não deixaram da outra vez e não vão deixar agora''.

Até para os desatentos, fica evidente a ilação. Dirceu estaria insinuando que Lula teria sido o candidato dos abonados em 2002. Mas, atenção. Dirceu sempre foi apresentado como o arquiteto da ''estratégia vitoriosa'' de ampliação do leque de alianças que levou Lula ao Planalto em 2002. Ele já sabia disso naquele momento? Se sabia, por que não explicitou? Teria sido menos traumático constatar os resultados práticos da guinada ideológica em direção a companhias poucos recomendáveis, onde o mergulho na corrupção era conseqüência previsível - o desmonte da seguridade social pública, a lei de falências, a lei dos transgênicos, o descumprimento de metas da reforma agrária, algumas das prendas ofertadas ao sistema financeiro privado e a latifundiários do agronegócio.

Mas vamos adiante. Tão incisivo quanto Dirceu foi o presidente da Confederação Nacional da Indústria, Armando Monteiro Filho. Não fez por menos, em declaração ao Estadão: ''largos setores da comunidade empresarial acreditam que Serra é mais intervencionista. O mercado tem mais medo dele do que do 'novo Lula' que emergirá na campanha eleitoral''.

É bom atentar. Trata-se de porta-voz do segmento industrial insatisfeito com a política de juros. Imaginem o que vai nas mentes mais discretas dos banqueiros, os principais favorecidos com o atual modelo macroeconômico.

Ou seja; confirma-se por intérpretes incontestáveis o que temos afirmado aqui no JB. O governo Luis Inácio Lula da Silva se consagra como mais eficaz na defesa dos interesses do grande capital do que o teria sido o mandarinato tucano-pefelista de FHC, seu antecessor. E não é difícil compreender o porquê. Só ele - por tudo o que simbolicamente significou antes de se empanturrar nas benesses dos palácios - poderia, simultaneamente, operar interesses das duas vertentes antagônicas de nossa estrutura social.

Numa ponta, multiplicando ainda mais os lucros pantagruélicos dos rentistas especuladores; dos atuais controladores das grandes estatais estratégicas privatizadas; e dos exportadores do agronegócio sem risco (porque tem seus débitos financeiros constantemente anistiados pelas instituições oficiais de crédito).

Na outra ponta, neutralizando a combatividade dos movimentos sociais organizados com constantes acenos tranqüilizadores, avalizados pelo farto patrimônio político acumulado em duas décadas de lutas, hoje renegadas, quando não ridicularizadas.

Como é impossível corresponder, ao mesmo tempo, a tão contrastantes representações, alguém começa a se dar conta, em algum momento, de que está sendo traído. Não foram, como comprovado, os de cima. E se a corrompida cúpula da CUT continua imobilizada, na ilusão de que ninguém nota sua vilania, a liderança do MST já começa a perceber as armadilhas em que foi enfiada. A recente troca de notas agressivas entre o ministro Rosseto - quem diria... - e os sem-terra, tratados como ''levianos'', sinaliza uma possível ruptura explícita. Com a CNBB, sem dúvidas, do lado dos sem-terra.

Como isto vai repercutir nas eleições de 2006, difícil prever. Só resta fazer votos para que seja no sentido da retomada de mobilização dos que, pela decepção, entraram em pausa. Reagrupando a esquerda autêntica em torno de uma candidatura em sintonia com os anseios de esperança, apenas momentaneamente surrupiados.