O Globo, n. 32.297, 09/01/2022. Política, p. 8
Pesquisa inédita mostra que abolição da escravidão é fato mais
importante da História do país para os brasileiros; veja lista
Marlen Couto
Em
meio à ampliação do debate na sociedade sobre racismo e desigualdade racial, a
abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, foi apontada como fato mais
importante da História do país pelos brasileiros. Pesquisa inédita encomendada
pelo Observatório Febraban ao Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e
Econômicas (Ipespe) mostra que a assinatura da Lei Áurea
foi citada como primeira resposta de 31% dos entrevistados, ao serem
questionados sobre os momentos mais significativos do Brasil.
Prestes
a completar 200 anos, a independência, em 7 de setembro de 1822, aparece na
segunda posição, com 18% de preferência. Em seguida, com 8%, estão a
Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889; o fim da ditadura militar,
que levou à redemocratização do país, em 1985; e o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.
Outros
momentos recentes, como a Operação Lava-Jato, o Plano Real, o impeachment do
ex-presidente Fernando Collor e a implementação do Bolsa Família, também
aparecem com destaque.
Para
o sociólogo Antônio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe, fatores estruturais, como a alta proporção de
negros na população brasileira (54%, de acordo com o IBGE), e conjunturais,
como o fato de o combate ao racismo ter se consolidado como uma agenda no
Brasil e no resto do mundo nos últimos anos, ajudam a explicar a importância
atribuída ao momento histórico:
—
De um lado, é sabido que o Brasil foi o último país da América a abolir a
escravidão, e isso tem significado para a população negra. Do outro, entrou
para a agenda global a discussão sobre os efeitos perniciosos da desigualdade
racial. Isso foi muito forte em 2020 e 2021.
Os
dados indicam ainda que a abolição da escravidão foi mais citada pelos mais
jovens, com 18 a 24 anos. Nesse grupo, o percentual chega a 40%, ante 25% na
população acima de 60 anos. Não há diferença tão significativa nos recortes por
escolaridade e renda.
Professor
de direito internacional e direitos humanos na FGV, Thiago Amparo destaca que,
apesar da permanência do racismo cotidiano, institucional e estrutural no país,
o Brasil tem passado por um processo de amadurecimento e difusão do debate
racial, puxado por intelectuais e ativistas negros e negras.
—
O Brasil, diferentemente de muitos países latino-americanos de língua
espanhola, não pensa profundamente sobre seu processo colonial. Isto faz com
que, no Brasil, o Dia da Independência seja mais um feriado do que efetivamente
um momento de reflexão sobre legado colonial em nossas instituições. Em
paralelo, o debate sobre abolição ferve, em parte pela constatação do
protagonismo negro na abolição, em parte pela ideia de uma abolição inconclusa,
posto que racismo permanece no país.
Fatos
mais lembrados
1º - Abolição da Escravidão, 1888
2º - Independência do Brasil, 1822
3º - Proclamação da República, 1889
4º - Redemocratização pós-Ditadura, 1985
5º - Impeachment Dilma Rousseff, 2016
6º - Operação Lava-jato, 2014-2021
7º - Implantação do Real, 1994
8º - Criação do Bolsa-Família, 2003
9º - Impeachment Fernando Collor, 1992
10º - Golpe de 1964 e o regime militar
A
conexão com o presente e a relação com as lutas políticas da atualidade têm
mais impacto na percepção do passado do que a compreensão do processo
histórico, avalia o historiador e diretor da Editora da Universidade Federal
Fluminense (Eduff), Renato Franco:
—
A questão racial no Brasil permanece como um problema em aberto, diante da
timidez das políticas públicas de inclusão que outorgam uma cidadania
incompleta aos descendentes de escravizados. Por sua vez, o fortalecimento dos
movimentos sociais e a ascensão das políticas de cotas nas universidades têm
contribuído para repropor a pauta racial, especialmente entre os mais jovens.
Apesar
de figurar entre os momentos históricos mais lembrados, 59% dos brasileiros
ouvidos informaram não saber do bicentenário da independência.
O
comportamento e memória dos brasileiros em relação à data se diferencia das
experiências de outros países, como os Estados Unidos. Um levantamento da
empresa de pesquisas americana Gallup mostrou em 2001 alto interesse da
população do país nas celebrações: 76% informaram que pretendiam participar de
celebrações familiares, e 66% informaram que pretendiam exibir uma bandeira do
país.
Professora
de História da UFF, Janaína Cordeiro pesquisou a celebração feita pela ditadura
militar, em 1972, quando a independência completou 150 anos. Ela afirma que o
grito do Ipiranga pode ter menos apelo na população do que a abolição por ter sido
construído "de cima para baixo" — o país, que já abrigava a corte
portuguesa desde 1808, passa a se organizar como uma monarquia que tinha Dom
Pedro I como imperador.
A
pesquisadora ressalta que a data tem lugar de destaque na tradição nacional,
mas precisa ser suscitada pelos agentes públicos e pela sociedade civil, o que
não tem acontecido no governo federal:
—
Bolsonaro convocou manifestações no 7 de setembro, mas mesmo naquele momento
não foi capaz de associar significado histórico à data, o que evidencia um
desprezo pela História que não foi comum mesmo em governos autoritários.
No
ano passado, após uma série de críticas pela falta de planejamento de ações
para o bicentenário, o secretário especial da Cultura, Mario Frias, anunciou
uma linha de crédito de R$ 600 milhões para as celebrações.
A
historiadora Rosa Maria Araújo, diretora do Arquivo Geral do Rio e integrante
de um grupo de trabalho para as comemorações do bicentenário na cidade,
acrescenta um outro dado à discussão: os impactos da instabilidade política e
das crises econômica e sanitária têm "apagado" a data. A pesquisa do Ipespe mostra que, para os brasileiros, são justamente a
saúde, a educação e o combate à fome que devem receber uma maior atenção em
2022, assim como o desemprego e o custo de vida.
—
Há uma concorrência com a Covid, que está solapando o Brasil do ponto de vista
sanitário, economicamente e socialmente — diz Rosa Maria Araújo.
Preocupação
com a democracia
Turbulências na relação do Executivo com o Legislativo, como os dois
impeachments, e acontecimentos que ainda resvalam no cotidiano político e
eleitoral atual, caso da Lava-Jato, também são lembrados — no caso da saída de
Dilma Rousseff e da operação que notabilizou o hoje presidenciável Sergio Moro,
os impactos são visíveis no cenário em curso de 2022. O impeachment de Dilma
tem o dobro das primeiras menções que o de Collor e é mais lembrado por
entrevistados com ensino fundamental, o que indica que pode ter mais peso para
a base que ajudou a elegê-la. O fim da ditadura é mais citado entre brasileiros
com ensino superior.
O
cientista político Leonardo Avritzer, da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Observatório da Democracia, chama a atenção
ainda para o destaque da redemocratização entre os períodos históricos com
maior importância:
—
A população brasileira volta a se preocupar com a questão da democracia. Ao
mesmo tempo, temos grupos diferentes achando coisas diferentes, o que se
expressa num quadro polarizado.
A
pesquisa ouviu 3 mil entrevistados, de 19 a 27 de novembro de 2021, nas cinco
regiões do país. A margem de erro é de 1,8 ponto percentual para mais ou para
menos, com intervalo de confiança de 95%.
O
levantamento do Ipespe também mediu a percepção dos
brasileiros sobre símbolos nacionais que melhor definem ou representam o país e
sua população. A fé é apontada como a principal característica positiva dos
brasileiros — para 30% dos entrevistados, é o primeiro traço citado em uma
pergunta com múltiplas respostas. Já a natureza é citada como o aspecto que
melhor define o Brasil.