Título: O eixo federativo
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 30/12/2005, País, p. A2

Acossado pelos adversários, que fustigam o governo, o presidente Lula procura defender-se. Mas o presidente comete erro ao tentar jogar os municípios contra os estados. Essa foi a tática de seu antecessor, Fernando Henrique, que pretendia eliminar os estados como entes intermediários da Federação, e tratar diretamente com os prefeitos, a fim de os cooptar, no que atendia ao Consenso de Washington. Lula acusa os governadores de não darem a devida atenção aos prefeitos, e afirma que o governo federal está aberto às reivindicações dos municípios. Os governos autoritários costumam apelar para a retórica da "unidade nacional" a fim de esvaziarem a federação. A necessária unidade nacional só se obtém com a autonomia dos entes federados. No governo Vargas, em que houve simbólica queima das bandeiras estaduais, embora houvesse o controle político dos estados, não havia a concentração de recursos públicos na União, como veio a ocorrer depois de 1964. Os prefeitos não vinham ao Rio buscar recursos, passando por cima dos governadores. Cada um dos municípios e dos estados, mesmo sob o comando de interventores fiéis ao regime, dispunha de recursos, dentro da realidade do tempo, e só buscava ajuda ou empréstimos federais em situações de calamidade ou de emergência.

Durante os governos militares os estados passaram a ser desprezados pelos burocratas de Brasília, representantes dos interesses econômicos de São Paulo, estado que foi o mais poderoso suporte da ditadura, também no que se refere à violência da repressão. A Operação Bandeirantes, financiada abertamente por empresários paulistas, para promover a caça e a tortura dos resistentes, é símbolo daquele tempo amargo. Embora houvesse perseguição, tortura e morte em todo o país, as masmorras clandestinas dos comandos paralelos daquele grupo de São Paulo foram mais ativas do que as da Rua Tutóia, endereço oficial do DOI-Codi.

Desde a ditadura, há o claro interesse de negociações diretas entre os prefeitos e o governo central, coisa inadmissível em uma federação legítima. Nelas, o poder central é proibido de destinar recursos diretamente aos municípios. Aqui, o governo da União se vale da penúria dos estados, confiscados de suas receitas tradicionais mediante o sistema tributário imposto com a complacência de um poder legislativo alienado e de um Senado que não cumpre o seu papel de defensor direto das unidades federadas. O Senado Federal deve contrapor-se à União, e seria melhor, como marca de independência, que o governo central nem mesmo mantivesse líderes naquela alta câmara.

Esperava-se que a Constituição de 1988 restaurasse o sistema federativo, mas seu avanço, neste sentido, foi revogado durante o governo anterior. Nele houve intervenção aberta nos estados, com a privatização forçada de suas empresas e bancos e a imposição de instrumentos de sucção da receita tributária. Primeiro deles, a CPMF devia ser provisória e integralmente destinada à saúde, mas caiu na caixa única do governo e se tornou permanente. Depois vieram o Fundo Social de Emergência e as contribuições de intervenção no domínio econômico. Sendo "contribuições" e não tributos, essas taxas não estavam sujeitas à divisão constitucional com os estados, como ocorre com outros itens da arrecadação. Desde sua criação, o governo federal emprega esses recursos confiscados sobretudo na rolagem da dívida pública.

O governo acaba de liberar pouco mais de R$ 400 milhões para obras de emergência nas estradas. Deveria ter dado verdade à lei, usando os recursos da Cide dos transportes para os fins previstos, e destinado à saúde o que lhe pertence, a receita integral da CPMF.

Os estados federados não existem como adorno constitucional. Eles correspondem à necessidade histórica de regionalização do poder. Quando as autoridades econômicas da União concentram todos os recursos em suas mãos e passam por cima dos estados, buscando entender-se diretamente com os municípios, a federação é mais uma vez insultada.