Título: Além do Fato: As veias abertas da ditadura AI-5
Autor: Aluizio Alves Filho
Fonte: Jornal do Brasil, 31/12/2005, País, p. A5

Passou bastante despercebido o 37 aniversário do AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968 pelo governo Costa e Silva (1967 - 1969). Isto porque tradicionalmente registros das chamadas datas canônicas incidem sobre a década, o cinqüentenário, o centenário ou então sobre os anos terminados em 5, como as bodas de prata. Não que haja algo para se comemorar em relação ao AI-5, ao contrário trata-se de um dos capítulos mais execráveis da vida pública brasileira no século XX, senão o mais execrável. Recordar o AI-5 é acertar contas com uma das veias abertas que o nosso passado deixou. É manter vivo na consciência democrática da nação que algo de similar àquele ato nunca mais pode vir a ocorrer. Para bem compreender as circunstâncias políticas em que o AI-5 foi decretado é necessário destacar um conjunto de acontecimentos que o emolduram e precedem. O ponto de partida é o golpe de 1964 que colocou o país à deriva da legalidade, embora procurasse manter um simulacro de democracia.

O arbítrio colocado na ordem do dia pelo 1º de abril de 1964, que pode ser ilustrado pelas amargas lembranças das armas depondo o presidente da República, por cassação de mandatos calcadas em medida de força, por abusivas prisões de lideres políticos e sindicais, assim como de professores, jornalistas, estudantes e de membros de outros segmentos, teve como resposta a organização de diferentes formas de resistências e de lutas contra o estado de coisas reinantes.

A tensa situação existente, onde em nome do combate a corrupção e da dita subversão, as medidas de exceção haviam sido implantadas por militares e civis capitaneados pelo general Castelo Branco, tornou-se mais grave quando, em 15 de março de 1967, Costa e Silva ¿ escudado por oficias da ¿linha dura¿ ¿ sucedeu-o na presidência. Daí para frente, até o AI-5, as coisas se passaram como no auge de um pesadelo.

Primeiro foi a morte de Castelo Branco, um julho de 1967, num acidente aéreo. Fato seguido pela prisão do jornalista Hélio Fernandes, por artigo escrito sobre o episódio. Depois foi a Frente Ampla, movimento liderado por Carlos Lacerda numa tentativa de unir antigos adversários políticos, como Jango e JK, para pressionar o governo a restabelecer o Estado de Direito. O governo atacou a Frente com mão de ferro. O movimento não resistiu, fazendo mais fumaça do que fogo. Entretanto, o que fez mais fogo do que fumaça foi o movimento estudantil, a partir do assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto.

Nos meses que precederam o trágico acontecimento haviam se multiplicado os protestos estudantis. O restaurante do Calabouço, no Aterro, no Rio de Janeiro, era palco de seguidas manifestações de protestos dos estudantes. Em 28 de março de 1968, a Polícia Militar reprimiu uma manifestação no local deixando no chão um corpo estendido: o de Edson Luís ¿ migrante, rapaz pobre que, à noite, estudava num cursinho na esperança de concluir o ginásio e, de dia, engraxava sapatos para juntar trocados que o possibilitassem matar a fome no Calabouço.

Aturdidos com o corpo do menino inerte, reunindo uma força estranha que só se tem nos momentos de grande desespero e emoção, os bravos e hoje anônimos estudantes da FUEC (Frente Unida dos Estudantes do Calabouço) tomaram Edson Luis como bandeira e, nos ombros, ora chorando, ora gritando, denunciando e cantando o Hino Nacional, conduziram-no como se fora a reencarnação do Alferes das Gerais, até depositar seus restos mortais no chão do saguão de entrada da Assembléia Legislativa, na Cinelândia. Momentaneamente o governo perdera o pulso da situação. O enterro de Edson Luís foi uma passeata política que, estima-se, tenha reunido cerca de 100 mil pessoas, numero assombroso nas circunstâncias e na ocasião. A missa de sétimo dia, realizada na Candelária, atraiu uma multidão que foi fortemente reprimida, como atestam as fotos dos cavalos trepados nas escadarias daquele santuário.

Nos meses que se seguiram, os atos de protesto de rua, comandados por estudantes e muitas vezes embalados pelos versos de ¿Para não dizer que não falei de flores¿, de Geraldo Vandré, espalharam-se por outros estados do país. Conflitos envolvendo estudantes e forças públicas tornaram-se rotina nos nossos principais centros urbanos. A rebelião estudantil de 1968 encontrava respaldo na situação internacional. Nos Estados Unidos, estudantes protestavam contra a Guerra do Vietnã. Em cidades do porte de Paris, Berlim e Tóquio as reivindicações lideradas por estudantes também ganharam as ruas. Nas universidades reinavam os autores estruturalistas, mas o grande teórico daquilo que estava acontecendo era o filósofo Hebert Marcuse, cuja obra hoje está adormecida.

Os acontecimentos foram se sucedendo com a velocidade de raios que abrem clarões no breu da madrugada, radicalizando mais e mais as sérias contradições políticas existentes. Neste particular, destacamos: a eclosão de uma grande greve em Contagem (MG); a agressão física promovida por grupo de fanáticos de extrema direita e sofrida pela platéia e atores da peça Roda Viva (de Chico Buarque) que estava em cartaz em São Paulo; o cerco da Faculdade de Filosofia da USP, também promovida por fanáticos direitistas e a invasão policial à UnB, para reprimir ato de protesto. No inicio de dezembro o STF mandou libertar 81 presos políticos e o Congresso negou pedido dos ministros militares para que a imunidade parlamentar do deputado Marcio Moreira Alves (MDB) fosse suspensa, para que pudessem processá-lo por discurso proferido na Câmara considerado ofensivo às Forças Armadas.

A resposta a tudo isso foi draconiana. Em 13 de dezembro o governo decretou o AI-5, que explodiu como uma bomba no coração da nação. De simulacro da legalidade o Brasil mergulhava num triste período denominado pelos então arautos do regime como ¿milagre brasileiro¿. Triste milagre, hoje qualificado, pela literatura pertinente, como ¿anos de chumbo¿.

Aluizio Alves Filho é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do IFCS-UFRJ