Título: Os dilemas da ''democracia dirigida''
Autor: Israel Tabak
Fonte: Jornal do Brasil, 01/01/2006, País, p. A2
Que regime é esse? O cientista político Serguei Markov, professor da Universidade de Moscou, não se esquiva de dar nome aos bois. Diz que a sociedade russa vive num sistema de ''democracia dirigida'' e hoje é composta por três grupos principais: a oligarquia econômica, a sociedade civil e a massa. - A mídia impressa é importante e tem liberdade. A sociedade civil se manifesta por meio dos formadores de opinião, mas a grande maioria da população não lê jornais. Enquanto isso, o governo controla três dos principais canais de TV. A democracia dirigida surge neste quadro em que o povo pensa que está bem informado apenas vendo a televisão.
De novo, um cenário que lembra o Brasil. Markov enumera outros pontos em comum como o tamanho dos territórios, a hegemonia econômica nas regiões onde os países estão inseridos, a estrutura federativa e a transição recente de regimes autoritários para um ambiente democrático. Historia os primórdios de capitalismo selvagem na Rússia, quando despontaram estruturas de poder também bastante conhecidas dos brasileiros: as oligarquias.
- Nos primeiros tempos capitalistas, sem regras claras de regulação, predominava a anarquia. O poder econômico ficou na mão de alguns poucos oligarcas, em geral pessoas que não eram importantes no antigo regime, mas, na maioria dos casos, tinham boa formação técnica e talento para explorar as crescentes oportunidades de excelentes negócios. Alguns ganharam tanto poder que passaram a financiar partidos e a ter altas ambições políticas. Putin freou essa tendência, instituindo normas e controles. Um dos oligarcas foi preso.
Alguns especialistas estrangeiros que estudam o cenário russo chamaram essa intervenção de ''recaída stalinista'', uma ameaça à democracia que engatinhava. Para Markov, no entanto, Putin teve o mérito de recuperar as instituições e a própria soberania russa, ''em todos os seus aspectos e não apenas no econômico, evitando que o país se desintegrasse''.
Quando instado a analisar o governo, Markov avisa que, entre outras funções, também é assessor de Putin. Explica, no entanto, que uma de suas tarefas é mostrar o caminho, mesmo que tenha de fazer críticas. Eis algumas:
- O sistema oligárquico, apesar de tudo, ainda continua forte assim como a distância entre os líderes políticos e o povo. Além disso, não existe uma estratégia clara do processo de modernização que se deseja para o país - afirma.
Na Duma, câmara baixa do parlamento russo, o deputado comunista Serguei Sobko esboça um conceito desse ''país desejável'' e esclarece que não é um saudosista do velho regime.
- As benesses do período comunista eram dirigidas para alguns poucos. Não queremos isso e valorizamos a democracia. Mas não se pode confundir o espírito democrático com esse liberalismo que temos hoje. Sem justiça social qualquer sociedade está ameaçada de se desintegrar.
Entre uma e outra aula na Universidade de Moscou, Serguei Markov considera ''interessante'' o paralelo entre os esforços de Lula e Putin por melhorias sociais para as faixas mais pobres, e as possibilidades de manutenção no poder ensejadas por essas políticas.
- Aqui, Putin anunciou melhorias em várias áreas, mas ninguém sabe exatamente do que se trata. Apesar da imensa distância entre ricos e pobres ser uma característica dos dois países, há uma diferença fundamental. Na Rússia todos ainda têm a sua casa, com infraestrutura barata ou subsidiada, incluindo o transporte, e além disso contam com pequenos terrenos nos arredores das cidades onde podem cultivar sua horta.
Uma incursão por algumas regiões de Moscou confirma essa diferença fundamental. Habitações que poderiam ser comparadas a favelas não são perceptíveis, ao contrário da tendência de todas as metrópoles brasileiras, onde a situação está fora de controle.
Quando o problema é a segurança, enquanto no Brasil a questão está diretamente ligada ao narcotráfico e à desintegração social, na Rússia tem a ver com o medo de atentados terroristas. Na Duma, mesmo os convidados podem sentir de perto o rígido controle que antecede um encontro agendado de uma delegação de jornalistas estrangeiros com deputados. O que seria uma simples checagem de passaporte parece durar uma eternidade.
Ao contrário da contundência do comunista Serguei Sobko, outros deputados - que mantêm contatos freqüentes com parlamentares brasileiros - preferem realçar as oportunidades de estreitar ainda mais as relações entre os dois países. Yuriy Barzykin, do partido governista Rússia Unida, destaca os enormes potenciais turísticos dos dois países e a possibilidade de intensificar a cooperação no setor.
Assim como as deficiências observados pelos turistas estrangeiros no Brasil, o viajante em Moscou tem a impressão de que o ''potencial'' russo precisa de uma boa lubrificação. O alfabeto cirílico e a quase inexistente transposição de informações para uma língua internacional, mesmo dos nomes de estações do metrô, torna a exploração da cidade uma aventura. No metrô, assim como em outros pontos da cidade, o viajante simplesmente se perde caso não contrate um guia exclusivo. E, apesar do baixo valor das aposentadorias russas, o turista brasileiro não deve se iludir: o custo de vida, comparativamente, é muito alto.
O diretor da Divisão Brasil do Ministério das Relações Exteriores, Konstantin Kamenev, enfatiza as convergências positivas: revela que o Brasil é um ''parceiro estratégico'' de tal magnitude para a Rússia que só mais cinco países - Estados Unidos, França, Alemanha, China e Índia - mereceram divisões exclusivas no ministério. Enumera algumas razões, entre elas a alta complementaridade das economias, a crença comum em uma ordem mundial democrática, multipolar, sem hegemonias, além de programas de combate à pobreza.
Para desenvolver projetos de modernização, a Rússia conta com um handicap: a liberação de recursos decorrentes do sucesso no pagamento adiantado da dívida externa, como acentua Elena Danilova, diretora do Departamento de Relações Econômicas Externas do Ministério do Desenvolvimento. Assim, por exemplo, uma versão russa das PPPs (Parcerias Público-Privadas) se destina a estimular setores estratégicos, como o de transportes, com a diferença de que, muitas vezes, é o Estado que ajuda empresas descapitalizadas.
Beneficiado pelo boom dos preços do petróleo, do qual é grande produtor, assim como de gás e carvão, o país, segundo Danilova, se esforça para modernizar e desburocratizar a máquina produtiva - um entrave histórico - espécie de ''custo Rússia''.
Uma visita ao museu do Kremlin, com o impacto causado pelos tesouros acumulados no tempo dos czares, serve como ilustração sobre as origens do comunismo. Assim também, a simples visão do prédio da antiga KGB, não muito distante dali, parece funcionar como aviso sobre os dilemas da ''democracia dirigida''.
Israel Tabak visitou Moscou a convite da agência de notícias Ria Novosti