Título: O Brasil no espelho da Rússia
Autor: Israel Tabak
Fonte: Jornal do Brasil, 01/01/2006, País, p. A2

Num típico domingo de inverno em Moscou, em frente ao prédio do Museu Histórico, nas proximidades dos muros que cercam o Kremlin, um pequeno grupo de idosos agita bandeiras vermelhas com a foice e o martelo e distribui panfletos com a figura de Lenin em destaque. Uma cena hoje corriqueira no centro da capital russa. Mais que simples contraste, a manifestação expressa um dos principais desafios da sociedade pós-comunista: as benesses do capitalismo não foram suficientes para tirar da cabeça dos velhinhos o rudimentar kit de sobrevivência a que tinham direito no regime soviético. A manifestação clama contra o baixíssimo valor das aposentadorias e pensões ¿ em média não ultrapassam US$ 100, equivalente ao preço de 10 chapkas, o tradicional gorro dos cossacos, vendidas por um camelô alguns metros adiante. Não se vá pensar que a sociedade russa quer a volta do comunismo. Longe disso. As sondagens de opinião mostram claramente que as queixas contra os contrastes que afloram em tempos de liberalismo econômico não significam um desejo generalizado de retorno aos velhos tempos de totalitarismo e terror. Para um observador brasileiro, no entanto, o que mais chama a atenção são algumas curiosas coincidências e semelhanças da conjuntura política e social vivida pelos dois países. Na Rússia, como no Brasil, benefícios sociais são restringidos por medidas polêmicas. Lá como aqui, a importância dos chamados formadores de opinião está limitada a uma pequena faixa da população que lê jornais e revistas noticiosas. A grande massa se julga informada pelo que vê na TV, e os dois governos têm dado mostras do valor que conferem a estações de televisão que não lhes sejam hostis. Enquanto Lula parece jogar seu destino político nos programas assistenciais que contemplam os grotões pobres, o presidente Vladimir Putin anuncia reformas sociais para melhorar setores como saúde, habitação e educação.

É consenso entre os russos que, além das aposentadorias e pensões, a educação e a saúde se tornaram mais problemáticas na ordem capitalista. Afunilou a chance de se conseguir acesso gratuito tanto às universidades públicas quanto aos serviços de saúde estatais. A alternativa, para quem tem dinheiro, é tentar os serviços privados. A quantidade de grifes estrangeiras e de cassinos nas ruas centrais emoldura o mote que se ouve a toda hora da boca de jovens universitários: o único artigo barato em Moscou é o sanduíche do McDonald's. A história da sacola que os moscovitas costumam contar ilustra essa transição entre dois mundos distintos: no tempo do comunismo, os moradores da capital andavam sempre com uma sacola e percorriam as lojas estatais à espreita de que aparecessem nas prateleiras alguns artigos que estavam sempre em falta. Hoje muitos continuam carregando as sacolas e as prateleiras estão cheias, só que não há dinheiro para comprar.

Na paisagem muitas vezes monótona que contrasta com a exuberância das cores do Kremlim e cercanias, os sizudos ¿prédios stalinistas¿, todos parecidos, e que abrigam repartições importantes, trazem a lembrança dos tempos do regime sanguinário que matou milhões de russos, incluindo alguns dos mais expressivos líderes políticos e intelectuais. A preocupação dos que pensam a Rússia hoje é que, além das distorções introduzidas pelo capitalismo, essa pesada herança não contamine os esforços de modernização do país.