Título: Autismo
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Fonte: Jornal do Brasil, 03/01/2006, Opinião, p. A12

Na entrevista concedida ao programa Fantástico, da Rede Globo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reafirmou a inesgotável compulsão pelas declarações distanciadas da realidade. Neste terreno, infelizmente, os três anos de mandato do principal líder do Partido dos Trabalhadores apresentam uma vasta galeria de exemplos constrangedores. Desta vez, além da habitual soberba e ausência de modéstia (reveladas no suposto ineditismo dos feitos de seu governo) e das declarações evasivas (sobretudo quando confrontado com a possibilidade de o PT e o próprio presidente terem cometido equívocos políticos, éticos e morais), Lula omitiu informações relevantes e, principalmente, sugeriu que não tem controle do que se passa no Palácio do Planalto.

Questionado se sabia dos esquemas de corrupção forjados nos corredores do poder, o presidente disse que só há três hipóteses de saber das coisas: ''Quando você participa da reunião ou quando alguém que participou te conta ou quando sai uma denúncia''. Acrescentou que ''o importante'' não é saber se o chefe do governo sabia ou não das traquinagens em curso. ''Se eu tivesse condições de saber, não teria acontecido'', completou.

Sinal dos tempos. Não é a primeira vez, contudo, que o comandante oferece indícios de que está à frente de um trem desgovernado. Ou de que, pelo menos, padece de uma espantosa ingenuidade - haja vista a reconhecida proximidade do presidente com os operadores das ilegalidades reveladas até aqui. Gesto tão grave quanto a reafirmação de que fora ''traído por companheiros que fizeram práticas não condizentes com a história do PT'', sem que os nomes de tais traidores tenham sido enunciados na entrevista - recurso deliberado ou não pelo presidente.

Conjeturas vãs, ilusões inconseqüentes e declarações inconvenientes - práticas comuns da retórica presidencial - decorrem de um só mal, detectado desde os primeiros dias do desembarque ao poder: o autismo de Lula e de seu partido. Desde que, no início do século passado, Sigmund Freud e Carl Yung registraram o termo em carta (atribuindo a um estudioso da alma humana, Eugen Bleuler), essa patologia é sucessivamente verificada entre líderes políticos. Define-se como o desapego da realidade, a incapacidade de enxergar o outro, o ensimesmamento psicótico em seu mundo interior.

Entre os sintomas constatam-se o egocentrismo infantil e mesmo a fratura esquizofrênica da personalidade. De tal chaga padece, em especial, o PT, o qual, na visão do presidente, precisará ''sangrar muito'' para recuperar a credibilidade perdida depois da ruidosa crise de 2005. Em 25 anos de história, o PT buscou ser o monopolista da virtude e da esperança. Ambas foram seqüestradas pelos sucessivos escândalos. O partido nasceu e cresceu com o prenúncio de que seguiria trilhas radicalmente diversas das siglas e práticas políticas até então existentes. Frustrou militantes, admiradores e até mesmo adversários que lhes dedicavam respeito. Sob o argumento da realpolitik, a imposição das circunstâncias, contrariou sua história - ou o que se imaginava ser uma bonita história.

Perturbações agravadas pela compulsiva fantasia do presidente, cuja biografia, acredita o próprio, o inclui como o líder dos desvalidos e injustiçados. Lula se vale, assim, das crenças messiânicas ainda arraigadas no país - fenômeno que remete aos reis taumaturgos, da Idade Média, cuja legitimidade estava na capacidade de operar milagres. O ungido, porém, admite desconhecer o que se passa na ante-sala. Dele não se esperaria nenhuma onipresença. Mas se exigiria o mínimo: prudência nas ações e olhar atentíssimo dirigido aos aliados que escolheu para dividir o poder.