Título: O espetáculo da sem-vergonhice
Autor: Augusto Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 05/01/2006, País, p. A2

Nenhum parlamentar brasileiro trocaria de gabinete com um integrante da Câmara dos Comuns, versão inglesa da nossa Câmara dos Deputados. Nem seria possível: os colegas de Londres não têm o que trocar. Não dispõem de gabinetes ou escritórios pagos pelo povo. Não têm sequer lugar reservado no plenário. Embora decidam os destinos de um império onde ainda há pouco o sol jamais se punha, acham tais requintes descartáveis. Aos membros do Poder Legislativo britânico, basta o salário mensal equivalente, na cotação desta quarta-feira, a R$ 19.781,00. É com essa quantia que se alimentam, moram, viajam, pagam as despesas da família. É com essa quantia que vivem, em residências compradas ou alugadas por conta própria.

Viagens gratuitas, só a serviço da instituição. Parlamentares ingleses não ganham passagens para visitas às bases, não se acomodam no banco traseiro de carros oficiais, não recebem verbas para a a contratação de assessores ou secretárias. Comparados aos pais da pátria dos trêfegos trópicos, os membros da Câmara dos Comuns lembram refugiados africanos. Pelos critérios aqui vigentes, vivem abaixo da linha da pobreza.

Tecnicamente, o salário de um deputado federal brasileiro - pouco mais de R$ 12 mil - é inferior ao dos súditos de Sua Majestade. Mas há os acréscimos criados por truques de mágico de circo mambente. Todos os integrantes da Câmara recebem R$ 3 mil a título de "salário-moradia". Além do 13º salário, inventaram o 14º, malandragem circunscrita ao prédio concebido por Oscar Niemeyer.

Há mais. Despesas comprovadas por notas fiscais (dessas que podem ser obtidas com o garçom amigo ou no posto de gasolina mais próximo) podem alcançar R$ 7 mil (fora os R$ 3,8 mil para os gastos dos assessores). A "verba de gabinete", hoje orçada em R$ 35 mil, é parcialmente consumida com o pagamento dos 20 funcionários a que têm direito. A outra parte é embolsada pelo chefe.

A essas ousadias pecuniárias se juntam privilégios de deixar rubro de inveja o mais fleumático parlamentar inglês. A jornada de trabalho em Brasília é a mais curta do mundo: dois dias e meio por semana. O expediente parece diminuto, mas deve ser fatigante: as férias anuais somam dois meses e meio.

Além da frota de carros oficiais, permanece à disposição dos congressistas uma tropa de engraxates, cabeleireiros e barbeiros. Tudo grátis, como as quatro passagens áreas que permitem aos 513 deputados matar a saudade dos parentes e dos eleitores. A festa dos bilhetes abrange os representantes de Brasília na Câmara. Nenhum precisa dar explicações sobre o que andaram fazendo com o brinde.

É muita sem-vergonhice, certo? Não para a ampla maioria dos beneficiários do balaio de espertezas, malandragens e apropriações indébitas. Neste verão, os representantes do povo brasileiro conseguiram superar-se. Invocando razões patrióticas - questões de especial relevância aguardavam a vez na fila de votação -, os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara, Aldo Rebelo, entenderam que o Legislativo merecia uma convocação extraordinária.

Preço por cabeça: R$ 25,4 mil. Total da gastança: cerca de R$ 100 milhões. Não chegam a 50 os parlamentares que recusaram publicamente a gorjeta gorda e ultrajante. A sem-vergonhice ultrapassara todos os limites, certo? Não para os habitantes do mundo do mensalão. Uma formidável maioria resolveu afrontar a nação com o espetáculo do ócio sem dignidade. Seguem longe do trabalho.

E da cadeia.