Título: Não há futuro no passado
Autor: Marcelo Coutinho
Fonte: Jornal do Brasil, 05/01/2006, Outras Opiniões, p. A11

Diferentes governos, partidos e 20 anos de democracia não foram capazes de transformar um país de elites relutantes, classes médias superficiais e povo pobre. A esquerda continua a depositar toda a culpa no neoliberalismo. É verdade que as reformas indiscriminadas em direção ao mercado agravaram o problema, mas certamente não são as únicas responsáveis pelas mazelas nacionais. Já a direita sentencia que tudo é conseqüência de um Estado perdulário e obeso, deixando ainda entrever fatores culturalmente atávicos em nossas dificuldades. Os centristas, por sua vez, guiam-se por um desses dois lados conforme a conveniência.

Aparentemente, segundo as últimas pesquisas, o eleitor brasileiro começa a embarcar em ''nova'' aposta a partir de tal disposição ideológica. A idéia de recall se difunde e sugere haver na sociedade um sentimento saudosista com relação ao anos 90, embora não se saiba muito bem o porquê. Estes não foram anos dourados, de prosperidade incorruptível. Muito menos foram anos estáveis ou de eficiência administrativa. Mas a realidade parece importar menos do que a fé crescente de que à época tudo funcionava bem e ao alcance de um interruptor de luz. Enfim, saudades do FMI e de um presidente letrado. Tudo em nome da racionalidade econômica, de uma inteligência pretensiosa que sobrevive a despeito dos inúmeros erros que comete e do mundo de fantasias que cria.

Afora avanços na estabilização monetária, a realidade é que há mais de duas décadas a economia do país se arrasta. A democracia não é responsável por isso, obviamente. Talvez seja mesmo vítima. Seja como for, caminhamos boa parte do tempo em círculos, sempre à procura de um futuro que nunca chega. Enquanto isso, argumentos autoritários (representantes de um passado remoto) se tornam a cada dia mais freqüentes tamanha a falta de entusiasmo que as lideranças democratas despertam. E não adianta apenas recriminar o retrocesso institucional e o populismo (seja lá o que isso signifique) na Venezuela e na Argentina, cujas economias crescem acima de 8% ao ano.

O fato é que no segundo semestre de 2005 voltamos a desacelerar a economia. Foi mais um período frustrante depois de grande expectativa criada no ano anterior. O controle da inflação foi sem dúvida uma grande conquista, afinal, consolidamos taxas anuais de um dígito. Mas depois de tanto tempo, parece pouco, lento e altamente custoso, de modo que ainda precisamos perseguir o desenvolvimento sustentável, que não precisa estar em posições extremas. Apesar de sinceras, muitas opções eleitorais são pouco viáveis, algumas delas românticas, outras simplesmente anacrônicas, o que abre caminho para o retorno do PSDB e PFL, ansiosos em reaver o poder. A princípio essa dupla não teria proposta que ultrapasse um moralismo tão espúrio quanto o discurso da eficiência que tentam imprimir. Foram eles os responsáveis pelo último endividamento brutal vivido pelo país, que o colocou de joelhos, com a arrogância de quem sabe o que faz, porque faz de cátedra.

Nas eleições de 2006, essa irresponsabilidade fiscal será travestida novamente do que há de mais moderno e sensato a fazer no país. Boa parte da agenda foi traçada recentemente em artigos veiculados em jornais. Teremos uma nova safra de reformas, isto é, mais do mesmo, independente de ser o candidato Serra ou Alckmin. Sejamos claros, como disse FHC na alvorada do ano: reformas previdenciária, na legislação trabalhista e no ensino superior, entre outras medidas na linha das privatizações, de um novo choque de abertura comercial e autonomia das agências reguladoras e do Banco Central. Na política externa esfriaremos nossas relações com a América do Sul em uma busca ingênua de oportunidades preferenciais com os Estados Unidos. Nenhuma novidade, portanto, nessa retomada conservadora que, caso se concretize após as eleições de outubro, deve entrar imediatamente em rota de colisão com os movimentos sociais já preparados para um grande confronto em 2007.

Nada de fatalismos. O enfrentamento que se anuncia pode ser evitado ou ao menos atenuado com um plano de desenvolvimento que adicione ao tripé da estabilidade (controle da inflação, câmbio flutuante e superávit primário) metas de crescimento (5% ano) e distribuição de renda (1% Gini/ano), às quais todo o resto deve se ajustar nos próximos 20 anos, quando poderemos então nos considerar praticamente desenvolvidos (o desempenho de 2004 pode ser tomado como parâmetro). Em termos bastante objetivos, é preciso combater simultânea e consistentemente as duas grandes dívidas internas do país, social e pública, esta última com fórmulas mais criativas. Para tanto, no campo político, serão necessários uma base sólida de sustentação parlamentar e um bom trânsito entre os mais diferentes segmentos da sociedade. Caso Lula se candidate precisará do PMDB para formar um governo de responsabilidades compartilhadas, no qual o PT terá menos peso e, os aliados, maior participação no processo decisório.

Mesmo em 2005, apesar dos juros e da crise política que resultaram em um PIB medíocre, alguns setores cresceram até 15%, a balança comercial bateu novo recorde, o emprego e a justiça social aumentaram, ainda que mais lentamente do que em 2004 e do que o esperado, e o risco-país alcançou o patamar mais baixo da história, com reservas internacionais (aquelas que nos protegem de choques externos e especulações financeiras) em níveis bem mais seguros do que estavam três anos atrás. Dessa forma, não obstante as desilusões, é desaconselhável perder de vista que os tempos são outros, que aos poucos o Brasil recupera o domínio do seu próprio destino e, sobretudo, que o futuro não está no passado.

Marcelo Coutinho é coordenador executivo do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) do Iuperj.