Título: ¿Corrupção será mais sutil¿
Autor: Daniel Pereira, Hugo Marques e Tina Vieira
Fonte: Jornal do Brasil, 09/01/2006, País, p. A6
Mais uma vez, o Brasil não será passado a limpo, apesar da crise política e das investigações em curso. A avaliação é do cientista político David Fleischer, um americano nascido em Washington que compensa o tipo físico miúdo com um currículo e um rol de clientes extensos conquistados em mais de 40 anos de trabalho no país. Segundo Fleischer, o mensalão resultará apenas num refinamento da classe política, que buscará modos mais sutis de manter práticas à margem da lei. ¿ Há indícios de que outros partidos, como PSDB e PFL, estão na vala comum. A situação fede muito, mas talvez não chegue ao ponto final porque envolve muita gente ¿ declara.
Professor emérito da Universidade de Brasília, Fleischer afirma que a reeleição do presidente Lula é muito difícil, mas possível. Haveria 50% de chance de vitória. No PSDB, o adversário ideal para o petista seria o prefeito de São Paulo, José Serra. Tucano derrotado em 2002, Serra causaria apreensão nos grandes grupos do sistema financeiro e da indústria, ao contrário de Lula.
¿ Eles estão satisfeitos com o que receberam como políticas públicas e benefícios nos últimos três anos ¿ declara Fleischer.
Fala com a autoridade de quem tem entre seus clientes HSBC e JP Morgan Chase, além de embaixadas no Brasil, entre elas a dos EUA.
- A crise atual é mais grave do que a que resultou no impeachment do ex-presidente Fernando Collor?
- A crise do governo Lula é bem mais ampla do que a do Collor porque envolve dezenas de pessoas da classe política. Não são apenas os partidos da base de Lula. Há indícios de que outros partidos, como PSDB e PFL, estão na vala comum. A tendência de abafar é grande. A situação fede muito, mas talvez não chegue ao ponto final porque envolve muita gente.
- Por que a crise é mais ampla?
- O Collor perdeu a confiança do Congresso, e a maioria que ele nunca teve foi diminuída sensivelmente. A crise atual é mais ampla porque o Lula ainda tem supostamente maioria e porque envolve uma gama razoável do Congresso, principalmente na Câmara, envolvida no esquema do mensalão. São novidade também as agências de publicidade, que foram usadas como intermediárias. E estamos vendo estes dois bancos - o Rural e o BMG. O Banco Rural já tem folha corrida, era totalmente envolvido nas falcatruas do Collor. Deveria ter sido fechado pelo Banco Central, em 1992, pelos crimes que cometeu. Mas o Banco Central atua na política monetária. Na fiscalização, é zero.
- O envolvimento de vários partidos não sugere um acordão como desfecho da crise?
- O acordão salvará algumas pessoas. Mais dois ou três serão cassados, e os demais absolvidos.
- O que o futuro reserva ao PT?
- Como o Lula falou, o PT sangrou e continua sangrando. Parte do PT sangrará tanto que se conseguir eleger 50 deputados federais será milagre. O partido elegerá uns quatro senadores e talvez nenhum governador. O PT teve a chance de mudar com o Tarso Genro. Quando ele assumiu interinamente a presidência do partido, propôs uma faxina geral. Mas o partido vetou, porque muita gente seria 'faxinada'. Segundo o DataFolha o PT perdeu um terço dos seus simpatizantes em um ano.
- Os antigos simpatizantes do PT não migraram para outros partidos. Há espaço para a vitória de um aventureiro?
- Mais de 50% dos entrevistados não têm preferência partidária. Esse contingente é uma incógnita. Um novo salvador da pátria é uma das possibilidades, como o Collor em 1989. O Garotinho aspira a ser esse salvador. Mas tem muito líder tradicional no PMDB que não gosta dele. Por isso, estão lançando vários pré-candidatos para barrar o Garotinho.
- Para onde o eleitor do PT rumará em 2006?
- Na eleição para deputado, o PT perderá muito. Lula está mais ou menos descolado do PT. Em 1994, 1998 e 2002, teve muito mais votos do que o PT obteve para deputado.
- Como será a eleição de 2006?
- Tanto PFL como PSDB têm de tomar muito cuidado porque têm telhado de vidro também. Se jogarem pedras em cima do PT e do Lula, receberão pedradas de volta.
- Uma campanha pesada não jogará a crise para 2007?
- Essa foi a sensação de PSDB e PFL em 2005. Não atacaram Lula e não pediram impeachment porque ele poderia ficar fortalecido na opinião pública e virar mártir. E também porque o setor privado e os bancos estão satisfeitos com o desempenho do governo Lula. PSDB e PFL pensaram que talvez ganharão a eleição. Se derrubarem todo o edifício do governo, levarão 2007 e 2008 para colocar ordem na casa. Pode ser um freio na sangria na campanha, para evitar uma derrubada total das instituições.
- O senhor acha que Lula está morto em termos de eleição?
- Lula pode nos surpreender em 2006, recuperar uma certa posição de candidato competitivo. Isso depende muito da oposição. Acho que Geraldo Alckmin será um candidato pior para Lula enfrentar do que o Serra. Serra já foi derrotado uma vez e tem uma personalidade diferente. Alckmin tem uma experiência em São Paulo. Também tem outra grande vantagem porque o setor privado aceita ele, mas grande parte do setor privado fica um pouco apreensivo com relação a Serra. Todo mundo lembra dele digladiando com Malan.
- Os R$ 30 bilhões em investimentos previstos para 2006 podem impulsionar a campanha de Lula?
- Sim. É por isso que a oposição está tão alvoroçada e tentará atrasar o Orçamento. Tem ainda a verba do BNDES e das grandes estatais, que somadas chegam a uns R$ 50 bilhões.
- Será criado um clima de euforia econômica?
- Sim, um clima de euforia, de emprego, uma imagem de governo mostrando serviço, não apenas recapeando estradas, mas fazendo habitação popular, saneamento. E como a população não tem memória boa para lembrar o que o governo fez em 2003, 2004 e 2005...
- A classe média vota pelo bolso?
- Vota pelo bolso, mas vota muito pela percepção de sucesso ou fracasso administrativo. E o mensalão pegou muito mal na classe média. Mas é muito importante lembrar que para as classes produtoras ter um governo popular, tipo Lula, é excelente, porque muitas vezes esse governo consegue e fazer coisas que um governo neoliberal não consegue. Foi assim com os socialistas na França, na Espanha. Foi a história da reforma da Previdência, em 2003, no Brasil.
- Os bancos e as grandes indústrias estão fechados com o Lula como candidato?
- Não é que estão fechados com o candidato. Estão satisfeitos com as políticas públicas e benefícios dos últimos três anos. Também ficaram mais ou menos satisfeitos com o governo FHC. A grande pisada no tomate de FHC foi o apagão.
- Qual é o principal componente para a decisão do voto no Brasil?
- A situação econômica, acesso a consumo, emprego, a sensação de que os preços estão controlados, a inflação está razoavelmente baixa e os salários médios estão aumentando gradualmente. O salário mínimo é outro jogo importante para 2006. Lula segurou o salário mínimo em 2003, 2004 e 2005. Agora está discutindo se aumentará um pouco mais.
- A reeleição de Lula é possível?
- Sim, mas é muito difícil. Ele tem uns 50% de chance de se reeleger.
- Os clientes do senhor ficaram preocupados com a situação do ministro Palocci?
- Esse é um ponto que agitou bastante os mercados. A gente procurou mostrar duas coisas. O Palocci, mesmo enfraquecido, continuaria. Se fosse substituído, seria, aparentemente, por Murilo Portugal.
- O senhor não acreditava na hipótese do senador de Aloizio Mercadante assumir a Fazenda?
- Os clientes ficaram alvoroçados com a possibilidade de Mercadante ou outro do PT substituir Palocci, porque desde 2003 petista não entra na equipe econômica. O Lula não é burro de mudar radicalmente, o que pode prejudicar sua reeleição. Essa plataforma de desempenho econômico é um pilar extremamente importante para a campanha do Lula. Era isso que eu colocava para os clientes.
- Na hipótese de reeleição do Lula, como ele governará?
- Seu governo seria totalmente diferente. Em 2003, ele teve 63% dos votos no segundo turno, seu partido elegeu 91 deputados, o que foi um marco extraordinário do PT, e o José Dirceu e os agentes conseguiram construir uma maioria rapidamente. A melhor hipótese possível para o Lula seria o PMDB fornecer o vice e fazer uma coligação. Mas nessa o PMDB não entra de bobo. Eles podem fazer a coligação, mas vão querer nove, dez ministérios importantes. Será um governo de coalizão em que parceiros não apenas ocuparão ministérios, mas participarão de decisões.
- Teremos um presidente Lula mais fraco no segundo mandato?
- Sim, um Lula mais fraco. O problema é que ele é carismático, mas não sabe administrar. Terá que encontrar outro Dirceu para ser seu gerente.
- A crise do mensalão levará a uma mudança das práticas políticas?
- Minha resposta é não. Não mudará as práticas políticas, porque já vimos esse filme antes. O mensalão amadurecerá a classe política, que usará outros mecanismos, mais sutis, para fazer a mesma coisa.