Título: Além do Fato: Gás russo traz dúvidas
Autor: Yuliya Tymoshenko
Fonte: Jornal do Brasil, 11/01/2006, Internacional, p. A9

A Europa respirou aliviada com o fim da disputa sobre o preço do gás natural entre a Rússia e a Ucrânia. O acordo, no entanto, traz mais dúvidas do que respostas. Ao colocar a necessidade energética da Ucrânia nas mãos de uma obscura empresa ligada a criminosos internacionais, o acordo planta as semente de novas e talvez mais perigosas crises. Por isso, entrei com uma ação na Justiça contra este negócio. Deixemos que uma audiência pública revele exatamente o quanto vamos nos beneficiar com este acordo.

A concordância entre a Ucrânia e a estatal de gás russa, Gazprom, é intolerável porque o futuro energético do nosso país foi colocado nas mãos da RosUkrEnergo, um câncer criminoso no corpo da nossa estatal de gás. A RosUkrEnergo foi fundada nos últimos meses do regime do antigo presidente, Leonid Kuchma. Mesmo recente, ganhou miraculosamente o controle de toda as importações de gás da Ásia Central. Sob o acordo da semana passada, ela mantém este controle.

Como alguém que trabalhou na indústria de gás antes de entrar para a política, sei que o comércio do combustível nas ex-repúblicas soviéticas é banhado em corrupção. No meu mandato como primeira-ministra, o governo procurou investigar a RosUkrEnergo, para descobrir precisamente quem são seus donos, como conseguiu o monopólio para a importação do gás da Ásia Central e para onde iam os lucros. Agora que não estou mais no governo, a investigação foi arquivada. A segurança energética da Ucrânia ¿ e, logo, a certeza do abastecimento para a Europa ¿ nunca será garantida enquanto o combustível transitar pelas mãos de organizações secretas com donos desconhecidos.

Mas as questões levantadas com a disputa do gás vão além da segurança energética. Kiev foi obrigada a assumir um papel de co-protagonista nos assuntos europeus. Deve considerar onde e em que tipo de Europa se encaixa, que equilíbrio deve dar entre a Rússia e a União Européia e como ter a autodeterminação necessária para participar como membro pleno dos negócios mundiais.

Seria uma tolice sugerir que os ucranianos fossem dialogar como uma tela em branco. Séculos de dominação dos impérios russo e soviético moldaram a maneira como os ucranianos vêem seu país e seus interesses. Uma conseqüência disso é que, após séculos de dominação dos impérios russo e soviético, somos geralmente tímidos em defender plenamente nossos interesses independentes ¿ exemplificada pela aceitação de Kiev em um acordo que deixa sua segurança energética tão insegura.

Ao mesmo tempo, o entusiasmo em relação a uma eventual adesão à UE é baseado na idéia de que a segurança européia é indivisível.

Reconhecemos que poucos entre os entusiastas da integração européia querem ajudar Kiev a rapidamente se tornar membro do bloco. Mas o risco às reservas de gás da comunidade mostram que nossos destinos estão ligados. A Europa deve ter o seu papel enquanto a Ucrânia redefine seus laços históricos com a Rússia e suas ações não podem minar nossa independência nacional.

Nossa decisão, há mais de uma década, de abrir mão do status de nação nuclear é o mais claro sinal da nossa intenção de boa vizinhança e maturidade política. E só defendendo nossos interesses nacionais na disputa do gás podemos estabelecer nosso papel em uma Europa renovada. (Project Syndicate)