Título: Mauro Santayana
Autor: O problema é político
Fonte: Jornal do Brasil, 13/01/2006, País, p. A2
Ao que parece, o governo não está levando a sério a resistência dos estados ribeirinhos ao projeto de desvio de parte das águas do São Francisco. O ministro Ciro Gomes e o presidente da República usam dois argumentos discutíveis, o da viabilidade técnica e o da solidariedade nacional para com os sertanejos. E se esquecem do problema principal, que é político. Político com pê maiúsculo. As objeções de ordem técnica são conhecidas - e a mais consistente delas foi exposta pelo governador João Alves, de Sergipe. O custo é muito alto, a manutenção do fluxo, com a necessária elevação das águas, mediante a energia elétrica, custará bilhões, e o benefício real será muito pequeno se a água chegar aos sertanejos que vivem na região mais seca. Outras soluções, mais baratas e mais efetivas, que beneficiem o semi-árido, poderiam ser empregadas - mas o governo insiste em deixar grande marca no mapa.
Sobre a solidariedade nacional com os nordestinos há muito que falar. As oligarquias daquela região, que sempre exploraram, oprimiram e desdenharam os pobres, reclamam a ajuda do resto do país, e ela não tem faltado, na transferência de recursos orçamentários e na doação direta da população, como registra a História. Grande parte dos recursos oficiais se desviou para o usufruto dos oligarcas. Os jornais do passado se referiam regularmente aos chamados industriais da seca, que se enriqueciam na intermediação dessas verbas. Sabe-se que até mesmo as chamadas frentes de trabalho, que o governo federal custeava a fim de amenizar a situação dos flagelados, eram manipuladas. Muitas delas se abriam em propriedades particulares, a serviço dos donos das terras - com o dinheiro público.
Todas essas questões têm que ser examinadas, quando se trata de gastar bilhões de reais, além de uma obra que deverá continuar nos próximos governos. E sobre todas há o problema político. O Brasil, pelo que diz a Constituição, é uma República Federativa. O governo federal não pode decidir uma questão dessa magnitude sem ouvir os estados envolvidos. Argumentam que a Constituição considera propriedade da União os rios que atravessam mais de uma unidade da federação. Mas isso não autoriza o governo central a desviá-los, no todo ou em parte, dos cursos naturais. O desvio toca no equilíbrio geográfico mas também no equilíbrio geopolítico. A política é o único meio que os homens descobriram para buscar a conciliação entre os interesses em conflito, e não suplantá-los pela força. Alexandre usou a espada para cortar o nó górdio, mas ao político cabe a paciência de desatá-lo. É até possível que - com todos os reparos que lhe façam - o projeto venha a ser executado, desde que as populações ribeirinhas estejam de acordo, e manifestem essa vontade, seja por referendo, seja mediante o assentimento de seus representantes nas assembléias legislativas. Mas o ministro e o presidente têm pressa. Querem passar logo para o fato consumado, iniciar as obras antes das eleições.
Para isso contam com aliados poderosos, como é o caso do ministro Nélson Jobim, presidente do STF, que acaba de paralisar a Justiça Federal de Sergipe em ação proposta pelo Ministério Público do estado. O ministro inverte a ordem da lógica ao dizer que impedir o processo dará danos irreparáveis. O que trará danos irreparáveis é exatamente iniciar obras que provavelmente não terão continuidade. Segundo se divulgou, o ministro fala em ''conflito federativo'', ao lembrar decisão anterior do STF contra o Estado de Minas Gerais, sobre o mesmo assunto. Se há conflito federativo, ele existe, sim, mas pela insistência de um projeto que fere diretamente a autonomia dos estados.
Desde o governo do senhor Fernando Henrique Cardoso vem se agravando o desrespeito do governo central ao pacto federativo de 1891. Nunca é demais relembrar que todas as rebeliões armadas internas, a partir da Revolução Pernambucana de 1817, até a Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1932, se deveram às reivindicações de autonomia regional.