Título: Insensibilidade suicida
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 13/01/2006, Outras Opiniões, p. A15

Na ciranda biruta da grave crise ética e moral que devasta o país e ameaça o regime, o Judiciário sempre foi reconhecido como a última esperança de resistência ao descalabro, a porta em que se bate na hora do desespero. Justifica-se, portanto, o receio com que a autoridade da toga se expõe na estranheza e singularidade do lamentável episódio do aumento de salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), na operação em dois tempos, patrocinada pelo presidente, ministro Nelson Jobim, em articulação pessoal no Congresso, em parceria com o então presidente da Câmara, o ex-deputado Severino Cavalcanti.

O enredo é confuso, enrola-se nas voltas e desvios de explicações insatisfatórias. De logo, o projeto enviado ao Congresso pelo presidente do STF propôs o aumento dos salários dos ministros de R$ 19.115,19 para R$ 21,5 mil, em 2005, com a esperta vigência retroativa a partir de 1° de janeiro, o que assegurou o recebimento da bolada dos atrasados.

Sem intervalo entre os atos, no mesmo lance, com fantástica presciência do índice de inflação do ano, o ministro Nelson Jobim cuidou de si e dos seus e emplacou novo reajuste para este ano, com a disparada dos salários ministeriais para o céu de brigadeiro de R$ 24,5 mil. Aprovado pelo Congresso, sancionado pelo Presidente Lula, ainda este mês, os ministros receberão os seus salários no teto do inequívoco privilégio.

A cascata da bonança irriga os salários reajustados da Justiça: dos ministros dos tribunais superiores, dos desembargadores dos tribunais regionais, dos juízes federais, do Trabalho, do tribunal do júri e dos juízes substitutos.

O constrangimento criado pelas críticas levou o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) a pedir a palavra para a temerária tentativa de sustentar que não houve aumento real para os juízes substitutos, porque ''agora o juiz de carreira, tanto no início como no final, recebe a mesma coisa.''. Insiste: ''O valor é seco, não tem penduricalho nenhum.''

A mesma cristalina lógica do argumento do ministro Nélson Jobim: ''não há despesa nova; há relocação da despesa velha a título de subsídio''.

Quando as coisas não se explicam, o esperto fecha a boca. Mas, se a toga escorregou na casca de uma jogada manhosa, o presidente Lula empurrou o governo para o pântano da desconfiança nacional. Ninguém acredita no que diz e nas suas peremptórias afirmações pendulares, que oscilam ao sabor dos interesses do momento. À medida que se enterra nas contradições, baixa a taxa de credibilidade. O mais ostensivo dos candidatos à reeleição, em plena a ostensiva campanha, teima no despiste primário das negaças. Lula não conclui uma frase sem falar na sua candidatura. E mobilizou a engenhoca do governo, viciada a não fazer nada, para a operação do fingimento das obras redentoras. Como grandes obras não existem, a correria atrás do voto esquivo acaba em farsa. Tal como a malfada operação tapa-buracos na rede rodoviária em pandarecos, esquecida nos três anos do mandato. De todos os cantos pipocam as críticas, as denúncias de desperdício do dinheiro da Viúva com remendos que as águas da época de chuvas despejarão no lamaçal dos votos da indignação pelo logro oficial.

Mas, ninguém bate o Congresso no campeonato da insensatez. Nas funduras da desmoralização, recordista dos índices de rejeição popular nas pesquisas, a Câmara está a pique de dar um tiro nos miolos com a provável aprovação do projeto, incluído na pauta da milionária convocação extraordinária da madraçaria, que aumenta de 513 para 521 o número de deputados. O melífluo presidente da Casa, deputado Aldo Rabelo, acautelado pelo rumor da rua, esclarece que o projeto entrou na pauta sem o amparo da prioridade e não tem prazo para ser votado. Convém não baixar a guarda para não ser surpreendido por um conchavo de fundo de plenário.

O autor, o até então desconhecido deputado Nicias Ribeiro (PSDB-PA), alega a necessidade da correção da representatividade dos estados. Não é nada disso: o escândalo do caixa dois e do mensalão ameaça o revide do eleitor, complicando a reeleição para um dos melhores empregos do mundo. Quanto mais vagas, maiores as chances de reeleição para o desfrute da mamata das mordomias, vantagens e privilégios.

O que o Congresso anda precisando com urgência é de uma varredura em regra, a começar pela redução drástica do excesso de parlamentares. Três senadores por Estado é demais, como na casa de caboclo. Dois, a conta da seriedade. E a poda dos 513 para duas centenas e quebrados só melhoraria o desempenho da Câmara restituída à sua compostura.

Enxuto, sem as gorduras da ociosidade, o Congresso talvez fosse sacudido pelo vexame destes tempos de opróbrio para tentar a reforma política séria, profunda, moralizadora. Com o enterro da trampas como a verba indenizatória, que mascara o salário indireto, sem desconto do imposto de renda e a adoção da jornada normal de trabalho, de segunda a sexta-feira. Para fulminar a maroteira do parlamentar que não mora em Brasília, desfrutar o espichado fim de semana com a família, amparado pela desculpa esmolambada de que visita as suas bases eleitorais, basta acabar com as indefensáveis quatro passagens mensais pagas com o nosso dinheiro.

Se o Congresso preferir arriscar a aprovação do aumento dos deputados, depois que vá chorar, na quentura da cama, as lágrimas do arrependimento.