Título: A ideologia do muro
Autor: Emir Sader
Fonte: Jornal do Brasil, 15/01/2006, Outras Opiniões, p. A11

Ela já existia na prática, mas agora a decisão é oficial: um muro separa os EUA do México. Em meio à apologia do ''livre comércio'', os capitais e as mercadorias, as empresas - sejam bancos ou corporações industriais - podem cruzar fronteiras, os seres humanos não. Um muro de 3.200 quilômetros de extensão separará a única fronteira no mundo entre um país do centro e outro da periferia do capitalismo.

Talvez baste isso para recordar que o sistema econômico dominante tem uma característica - é um sistema capitalista. Isto é, um sistema em que o sujeito é o capital e não o trabalho ou os seres humanos.

Por que isso acontece? Em primeiro lugar porque já vivem nos EUA 14 milhões de trabalhadores mexicanos, parte importante deles sem carteira de trabalho. São tolerados, super-explorados e passíveis de expulsão a qualquer momento. Competem assim em melhores (ou piores, se se preferir) condições com os trabalhadores estadunidenses - ganhando menos, com menos direitos, sem sindicalização e direito à greve. Bastam para as necessidades do mercado de trabalho dos EUA, continuam ingressando regularmente trabalhadores, sejam fazendo buracos por debaixo do muro, seja entrando em caravanas clandestinas pagando somas muito altas para intermediários, seja entrando com papéis falsos.

Em segundo lugar, existe a pressão dos sindicatos, a partir dessa competição, para que se limite o ingresso de trabalhadores estrangeiros, em um mercado saturado por formas de expansão econômica que não aumentam a oferta de empregos e por ciclos recessivos que as diminuem.

Além disso, a nova doutrina de segurança nacional do governo Bush coloca as demandas dessa política acima dos requerimentos econômicos, sociais ou culturais. Até mesmo o abastecimento rápido de matérias primas, peças e outros implementos, o chamado just in time - que passou praticamente a substituir os estoques das empresas - foi prejudicado em função dos controles de fronteiras, que atrasam a circulação de veículos do Canadá e do México para os EUA.

Mas no caso dos trabalhadores - e especialmente dos mexicanos - está o descaso do governo estadunidense em relação ao mundo do trabalho. A ideologia anti-mexicana, reatualizada e radicalizada no último livro de Samuel Huntington - Quem somos? Os desafios à identidade nacional estadunidense - em que mexicanos são satanizados.

Huntington considera que, apesar de ser um país de imigrantes, das mais diferentes culturas, os EUA somente poderiam sobreviver como uma nação ''anglo-protestante'', centrado nas suas crenças religiosas, culturais e políticas. A imigração mexicana, ao contrário das levas anteriores - irlandeses, italianos, entre outros -, não chegam com o simbolismo de quem entra ao país diante da Estátua da Liberdade, mas pela fronteira terrestre do sul, em alta proporção de forma ilegal.

Além disso, os mexicanos seriam de difícil assimilação, porque retornam constantemente a seu país ou sonham com um retorno definitivo. Seriam menos interessados em falar o inglês, difundem seus hábitos - musicais, culinários, mas também valores que Huntington - apoiando-se no preconceito generalizado contra os mexicanos - seriam os da preguiça e do ganho fácil de vida, em contradição com o espírito - que seria laborioso - dos estadunidenses. Para concluir o fantasma do ''perigo mexicano'', Huntington acena com o crescimento demográfico dessa ''raça'' - como diria o senador pefelista.

É preciso diabolizar o outro, torná-lo o espírito do mal, para se poder desatar contra ele a repressão, onde desemboca a discriminação. É mesmo espírito da ''guerra permanente'' de Bush, que primeiro cria a caricatura dos islâmicos, para depois desatar contra eles a fúria das armas.

O filme Um dia sem os mexicanos já ironizou o que seriam dos EUA sem eles, uma parábola para imaginar o que seria a riqueza estadunidense sem o duro trabalho cotidiano dos imigrantes. O que seria do capital sem o trabalho, o que seria dos ricos sem os pobres. Neste caso, o que seriam dos EUA sem o ''resto do mundo'' - isto é, sem todos nós.