Título: Morales resgata modelo de Estado benfeitor
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 20/01/2006, Internacional, p. A11

LA PAZ - A confusão gerada pela entrega dos mísseis do país aos EUA - que levou Evo Morales a chamar os envolvidos de ''traidores da pátria'' - ganhou mais um ingrediente ontem. Em uma entrevista coletiva de imprensa, o novo presidente revelou que as equipes de transição do Movimento ao Socialismo (MAS) estão encontrando resistência quando à transferência de informações estratégicas. Morales também revelou a intenção de retomar o modelo de desenvolvimento econômico baseado no controle do planejamento pelo Estado.

- Alguns ministérios não querem entregar documentações que solicitamos, principalmente de Inteligência e de Segurança. Temos visto como o Estado não tem soberania, como está entregue a certos poderes externos - acusou Morales.

O futuro presidente anunciou que sua tarefa prioritária será a de ''recuperar a soberania e a dignidade do país para nacionalizar os recursos naturais'' e mudar as estruturas política, econômica e social. Na entrevista, o líder do MAS contou que as comissões de transição comprovaram a existência de ''uma exagerada dependência de certos setores'' da cooperação internacional. Como reflexo, revelou, será dada prioridade ao envio ao Congresso da lei de organização do próprio governo.

- A primeira nacionalização a ser feita será a do Poder Executivo - afirmou.

Na nova estrutura projetada pelo MAS, Morales anunciou que seu gabinete terá 16 pastas. A principal será o Ministério do Planejamento - ''para restituir ao Estado a relação de orientações do desenvolvimento''. Estão previstas também a pasta da Justiça - ''porque um país democrático exige'' - e um Ministério das Águas - ''como expressão de recuperação dos recursos naturais''. A proposta foi detalhada ontem ao JB por Juan Ramon Quintana, um dos chefes da equipe de transição do MAS.

- O Ministério do Planejamento terá o controle dos outros e coordenará o financiamento externo. A nova estrutura será voltada para a transformação do modelo para o restabelecimento da capacidade política do Estado. Será uma pasta de coordenação interna e cooperação externa - classificou Quintana. - Hoje, US$ 600 milhões da receita boliviana são gerados por impostos. Outros US$ 500 milhões vêm de fora, mais precisamente dos EUA, mas se perdem em projetos sem efeitos práticos, que não chegam aos pobres - completou.

A idéia do novo presidente é voltar ao chamado Estado benfeitor para corrigir as conseqüências - principalmente sociais - de 20 anos de livre mercado no país mais pobre da América do Sul. Com isso, seriam restauradas políticas públicas proscritas há 20 anos, quando o então presidente Víctor Paz Estenssoro reduziu a participação oficial na economia e lançou, por decreto, o país no livre mercado (o projeto da Nova Política Econômica).

- O Estado tem de ser o ator central para planificar o desenvolvimento dos bolivianos - acrescentou o presidente, explicando as razões da criação do Ministério das Águas.

- A água não pode ser um negócio privado. Quando uma empresa viola os direitos humanos, o recurso deve ser público - disse.

Juan Ramon Quintana, que não é aymara, como a maioria dos colegas do MAS, cuida de assuntos de Segurança. E deu contornos à desconfiança do presidente quanto às resistências à transferência de dados.

- Todos os setores estão penetrados pelos EUA. Dizem ser pelo desenvolvimento, mas no fundo querem manter o poder colonial. Cerca de 95% dos gastos na luta contra o narcotráfico são pagos pelos EUA. Pagam tudo, a comida dos soldados, uniformes, armamento, os helicópteros e veículos. Como podemos falar em soberania desse jeito?