Título: Reação contra a descrença
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 20/01/2006, Internacional, p. A11

Novo governo enfrenta a desconfiança da população, que aguarda anúncio de medidas práticas que melhorem o dia-a-dia

LA PAZ - Descrentes na política, os bolivianos ainda não sabem o que esperar, em termos práticos, do governo que toma posse domingo. Há inúmeras demandas e faltam propostas concretas que melhorem o seu cotidiano, dizem. Mas o coordenador de Política e Segurança da comissão de transição do Movimento ao Socialismo (MAS), Juan Ramón Quintana, reage antecipando ao JB algumas dessas medidas, como o acordo para distribuição de gás canalizado, firmado com empresas chinesas e a formação de brigadas móveis de Saúde para as áreas rurais.

- Os chineses vão expandir a rede para ampliar o consumo doméstico de gás canalizado - afirma, em seu escritório em Sopocati, área rica da capital boliviana. Intelectual, de origem branca e provável ministro, Quintana afirma ainda que pretende fazer do produto um combustível mais barato, ''como o álcool no Brasil''.

- Vamos criar parcerias para levá-lo a quem precisa, à população - completa, na sala com estantes recheadas de títulos sobre políticas de Segurança Pública e pilhas de jornais - guardados todos os dias - para um arquivo sobre a vitória do MAS.

Principal riqueza natural do país, o gás é um tema crucial na vida dos bolivianos. É abundante, traz muito investimento, mas não está nas casas dos bolivianos. Para Plácida Chambi, uma índia aymara de 28 anos que vende Mocochinchi - refresco feito com pêssego seco - na calçada da avenida em frente à Praça São Francisco, a primeira ação de Morales está correta.

- Temos de pagar muito caro por botijões de gás que não duram nem duas semanas - reclama, enchendo copos com a bebida tradicional, tirada de um balde.

O médico aymara Juan Huarita, 40 anos, que dá plantão no Hospital dos Obreros (Hospital dos Trabalhadores), no Centro, faz coro:

- Aqui não temos gás. É preciso comprar garrafões industriais, que custam 112 bolivianos (R$ 32) e duram 15 dias. A mesma coisa acontece em casa - conta, sentado no corredor da Unidade de Terapia Intensiva onde funciona esta que é a principal referência de Saúde no país. O hospital público, onde não se vêem pacientes em macas nos corredores, à espera de atendimento, foi construído em 1964, ano da revolução levada a cabo pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) - processo parecido com o que ocorre agora no país por ter levado líderes indígenas e mineiros ao poder, modificando as estruturas econômicas e sociais. O desafio foi interrompido pelo golpe militar do general René Barrientos Ortuño, então vice-presidente, que rompeu com o ideal da ''Revolução Nacional'' do governo liderado por Víctor Paz Estenssoro.

Segundo Huarita, faltam equipamentos e tecnologia:

- Pessoal capacitado nós temos. Mas nunca posso dizer a um paciente que no dia seguinte encontrará o remédio de que precisa - lamenta.

A saúde será prioridade logo no começo do governo MAS, garante Quintana:

- Teremos brigadas móveis para as áreas rurais e, sobretudo vamos levar água potável à população - destaca. Hoje, 40% dos bolivianos não têm acesso a esse serviço básico.

A população teme, no entanto, que sejam apenas promessas:

- Evo nunca fez um discurso sobre o que fará. Ninguém sabe o que vai acontecer - diz a aymara Angélica Mamani, 30 anos, com o filho recém-nascido no colo, na Praça São Francisco. Para a costureira, a prioridade do MAS deveria ser a criação de ''mais empregos''. A falta deles faz com que o taxista Oswaldo Villa Lobos, de 26 anos, sonhe em tentar a sorte no Brasil. Um interesse, diz, sem relação com o sobrenome:

- Aqui não há trabalho. E ainda vai demorar a ter com Evo. Queria mesmo era ir para São Paulo, trabalhar em confecção - afirma, ressaltando que por não falar português optou por Buenos Aires, onde tem parentes. Embarca, de ônibus, no dia 29, com a intenção de ficar por três anos.

A camelô Marta Tito, de 30 anos, que vende de sabonetes a ligações telefônicas, se diz cansada de escutar promessas de políticos:

- É sempre amanhã, nunca hoje. Pode ser que agora seja diferente. Os outros governos venderam nossos recursos. Muita gente inocente morreu pelo gás - afirma, observando que ''se não fossem os mineiros e El Alto, Evo não teria sido eleito''.