Título: Além do Fato: Quase neoprotetorado
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 17/01/2006, Internacional, p. A7

Exceto pelos documentos das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos (OEA) e dos países interventores que continuam reivindicando a missão militar da ONU no Haiti, os informes das ONGs internacionais e a maioria dos observadores independentes coincidem em ressaltar o fracasso da intervenção internacional na ilha. A operação não apenas não conseguiu superar o caos prévio da queda de Jean-Bertrand Aristide, como que possivelmente contribuiu para ele, apesar das benévolas intenções dos Estados intervencionistas. A denominação de ¿Estado falido¿ que recebeu o Haiti não mudou nos dois anos de intervenção. As tropas ainda não estabilizaram o Estado, pacificaram o país, reconciliaram a sociedade e protegeram o território.

A população haitiana não se desarmou, não existe o mínimo de convivência política pacífica e a violência aumentou. As condições socio-econômicas continuam deploráveis, a fragilidade constitucional é eloqüente e a criminalidade segue florescendo ¿ aproximadamente 1/5 da cocaína colombiana passada pelo Haiti antes de chegar aos EUA. Em meio a este cenário, o Fundo Monetário Internacional (FMI) recomendou executar um programa de ¿reformas estruturais¿ como alternativa para recompor a economia da ilha: realizar mais arrocho no já paupérrimo país.

As eleições presidenciais estão marcadas para 7 de fevereiro. Entretanto, ninguém espera que o resultado produza um novo sistema político, assegure a proteção aos direitos humanos e signifique o começo de uma democracia vigorosa. E, tal como ocorreu na queda de Aristide em fevereiro de 2004, surgirá um novo clamor internacional por ¿fazer algo¿ pelo país mais sofrido do Caribe.

O dilema da América Latina neste momento ¿ lembrando que Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai têm soldados na força de estabilização ¿ é resolver se sai do Haiti no ano que vem (uma vez que se instale e comece a caminhar o novo governo) ou se permanece lá por vários anos, com mais soldados e novas tarefas. Sempre, claro, recebendo pressão de Washington, do secretário-geral da ONU, da França e da OEA. Os já envolvidos na missão não vão querer aparecer como desertores e não poderão questionar a ineficácia da ONU.

Na realidade, os governos destes países não sabem como ir embora do Haiti porque nunca ficou claro como eles lá entraram.

O dilema, no entanto, é apenas aparente, já que os países latinos não têm vontade política de reconhecer o caos ampliado produzido pela intervenção militar no Haiti, assumir sua parte da responsabilidade e sair da ilha. Não é vergonhoso tirar os soldados do Haiti, mas sim deixá-los lá depois deste fiasco, máximo quando vemos que os países interventores vêm administrando ¿ local, municipal e regionalmente ¿ situações similares à que se apresenta nacionalmente no Haiti.

Além disso, é bom recordar o que a tradição liberal clássica do século XIX, à diferença da perspectiva liberal moderna do século XX, ensinava: a democracia e os direitos humanos não devem ser impostos; cada coletivo político deve consegui-los, nutri-los e consolidá-los.

Provavelmente se contemple então o estabelecimento de um neoprotetorado no Haiti, mesmo que o termo seja um tabu. Cabe lembrar que a Carta da ONU faz referência a ¿territórios não-autônomos¿ (povos sem governo próprio), assim como ¿territórios fideicometidos¿ (sob administração fiduciária). A aspiração seria instaurar um esquema prolongado de administração internacional na ilha. Se pretenderia edificar um Estado cimentado, em oposição a um Estado colapsado, por meio de múltiplas normas trabalhistas, técnicas, materiais, jurídicas e políticas a cargo de um conjunto de nações. E com o apoio de algumas ONGs provenientes de países industrializados, com aportes de distintos governos e entidades.