Título: Que saudades de Tancredo...
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 17/01/2006, Outras Opiniões, p. A11

Para comprovar o estado pré-falimentar da democracia representativa brasileira, poucos exemplos poderiam ser mais eficazes. As propostas do senador Renan Calheiros e do deputado Aldo Rebelo, para as pautas da convocação extraordinária do Congresso, são verdadeiras confissões de culpa. A partir delas, fica comprovado o altíssimo grau de degradação da política institucional, se comparada, por exemplo, aos debates que marcaram a campanha das Diretas, ainda em pleno regime autoritário, ou aos que determinaram a derrubada do regime autoritário, na eleição de Tancredo Neves, lá nos primórdios dos 80.

Os que viveram o processo nunca esquecerão a primeira grande mobilização popular pelo voto cidadão, logo após à da Anistia, ambas sob a égide do famigerado AI-5. Marcos Freire, liderança do MDB autêntico, não hesitava em pregar, na Candelária, o rompimento com o FMI, e a revisão dos acordos sobre pagamento da dívida externa, como marcos fundadores da redemocratização do país. Pouco mais de dois anos depois, Tancredo Neves, já eleito presidente da República, em entrevista coletiva - no plenário do Congresso, para jornalistas brasileiros e correspondentes estrangeiros, é bom que se frise -, retomava a assertiva. Garantia que a não pagar a dívida externa ''com o sangue do povo brasileiro''.

Seria impossível cobrar, das lideranças do atual governo, atitudes próximas da ousadia dos simples ''liberais'' progressistas daquela conjuntura. Foram eleitos sob a égide da ruptura com o modelo de desmonte neoliberal do Estado, elaborado no mandarinato FHC, e terminaram por mantê-lo. Radicalizando-o. Tementes ao agiota credor, fazem laúza por pagar, antes do vencimento, faturas que sequer conferem.

Mas é inevitável constatar que passaram da conta, nos limites da mediocridade. Não propõem discussão profunda sobre reforma tributária que, quando eventualmente citada, é para buscar acordo com governadores, e não para corrigir a distorção atual - pesadas cargas sobre quem trabalha e vive de salário, simultâneas às escandalosas isenções a quem especula, ou a quem exporta lucros e dividendos obtidos à custa do trabalho assalariado.

Não propõem, também, uma verdadeira reforma política. Ocupam-se de remendos eleitorais, vendendo como avanço a eliminação dos direitos de minorias sérias, através da cláusula de barreira. Como se não fosse sabido que os deputados de aluguel estão alojados é nas legendas mais numerosas e já consolidadas. Não se preocupam com a implantação de instrumentos de controle social permanente sobre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Porque não cogitam da construção de um verdadeiro Estado democrático.

As ordens-do-dia dos plenários vão se compor apenas de medidas atenuadoras da lama de escândalos em que se atola o Parlamento. Uma possível redução do exagerado recesso, aqui, uma controladinha nos subsídios, ali, e ponto. Fica pendente a questão fundamental de toda essa tragédia; a determinação de responsabilidade pela degradação republicana a que a Nação se vê submetida.

Não é, evidentemente, só do governo Lula. Mas é principalmente do governo Lula, tendo em vista os compromissos com uma forma nova de fazer política que o Partido dos Trabalhadores badalou, como sua, por 25 anos. Se um segmento político que se pretendeu proprietário exclusivo da ética na política pode entrar pelos desvios tenebrosos que optou percorrer, após se acomodar nos tapetes dos palácios, por que os que sempre o fizeram não podem ir mais longe?

Mas a responsabilidade está também na forma consciente com que se desmoralizou o Congresso a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal que, ferindo o espírito da Constituição em vigor, permitiu a libertinagem na utilização das medidas provisórias, por parte de sucessivos mandatos presidenciais, aviltando a vida parlamentar. A responsabilidade está ainda na escandalosa e descontrolada utilização das famigeradas emendas individuais ao Orçamento, traço de união entre a corrupção e o abuso de poder econômico nas campanhas eleitorais..

Fica para o fim a responsabilidade essencial. A responsabilidade do eleitor que se concentra no voto do Executivo - presidente, governador ou prefeito - como agentes do modelo de sociedade em que pretende viver, sem dar atenção ao voto no Legislativo. Que, logo a seguir, vai desprezar, como se não tivesse nada a ver com a podridão resultante.