Título: Da expulsão do Congresso ao poder
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 23/01/2006, Internacional, p. A8

Povos indígenas acompanharam emocionados o ritual de posse de Evo Morales, que pediu o perdão da dívida externa LA PAZ - Há exatos quatro anos, no dia 22 de janeiro, o presidente boliviano, Evo Morales, era expulso do Congresso. Ontem, no entanto, levava à presidência do país os povos indígenas. Em El Alto, cidade que irradiou mobilizações fundamentais para a conquista, Melissa Ramos Ayauiri, de 24 anos, nascida um ano depois da democratização boliviana, acordou cedo para a festa mais esperada desde as eleições de 18 de dezembro. Para a ocasião, trança com adereços aymaras, usados somente em comemorações.

No café da manhã, Melissa contou a emoção do dia anterior, quando Morales passou por um ritual indígena:

- Minhas mãos suavam, as lágrimas não paravam . Imagina como vai ser hoje. É bonito ser protagonista dessa história.

A aymara educadora participou das recentes manifestações que viveu sua cidade e fez campanha para o Movimento ao Socialismo (MAS). Mas, diferente de outras eleições em que trabalhou para partidos por dinheiro, no ano passado o fez consciente de que lutava por mudança:

- Nunca um partido e um candidato me mobilizaram tanto. Acho que o mesmo aconteceu com outras pessoas que antes não se preocupavam com política. Hoje você anda nas ruas e todo mundo sabe o que está acontecendo no governo. Há sindicatos de tudo, até de ''chaqueleros'' (pessoas que oferecem serviços telefônicos nas ruas) e ''bicicleteros'' (responsáveis pelo transporte alternativo de El Alto) - diz, lembrando que escreveu e-mails a muitos amigos para convencê-los da importância da eleição de Morales e usou materiais que tinha em casa para fazer propaganda do candidato.

A televisão está ligada, sintonizada na chegada de chefes de Estado estrangeiros ao país, quando Melissa lamenta a ausência do presidente cubano:

- Fidel não chegou, mas continuo esperando.

Numa van a caminho da Praça Murillo, onde Morales faria, em algumas horas, o juramento que o conduziria ao Palácio Quemado, sua irmã, Milenka, de 27 anos, conta que o líder aymara não foi ao lugar onde vivem, apesar de ter visitado todos os estados bolivianos durante a campanha eleitoral.

Ao chegar no local lotado, a reação inicial é um suspiro emocionado. Na descrição de Milenka, muitas imagens nunca vistas:

- Olha essas quechuas com a estrangeira branca. Está acontecendo uma mistura aqui. Antes essa reunião não era sincera, as diferentes não se juntavam - comemora, ressaltando que há 50 anos os indígenas não podiam entrar nas principais praças da capital boliviana, referência que faria também Morales, na posse.

- Hoje não há desrespeito, nem a brancos nem aos indígenas - acrescenta.

Mas as lágrimas só vêm mesmo quando a sessão do Congresso para a posse de Morales e o vice, Álvaro Garcia Linera, começa. Do lado de fora do prédio oficial, a multidão acompanha a solenidade por telões e alto-falantes.

Morales aparece de terno, mas para a satisfação das irmãs, sem gravata:

- Ufa. Pensei que estivese de gravata - relaxa, depois que uma imagem no telão deu a entender que o presidente vestia o traje oficial dos mandatários.

O discurso de Morales foi marcado por indiretas a seus antecessores e provocações aos deputados da oposição. Palavras que descontraíram a posse, mesmo que em questão estivessem a corrupção de governos anteriores, os salários dos parlamentares ou os muitos hectares de terras de alguns presentes à cerimônia, que ouviram a determinação do novo presidente em relacao à reforma agrária. O presidente aproveitou ainda para pedir perdão total da dívida externa do país:

- Pedimos com todo o respeito que esta dívida que já fez tanto mal ao nosso país seja perdoada. Felizmente, alguns países, alguns governos e algumas instituições já demonstraram que vão perdoar. Em nome do povo boliviano, muito obrigado por este perdão, que deve continuar acontecendo até atingir toda a dívida externa.

Novamente citando o herói indígena Tupak Katari e o guerrilheiro Che Guevara, entre tantos ''que morreram pela América Latina'', Morales empolgou a multidão com um longo texto.

- É que estou contaminado por Chávez e Fidel - brincou.

Ao ver o novo presidente sair do Congresso, Melissa vibrou:

- Precisamos dele por 10 anos. Jallalla Evo! - comemorou, em aymara, pedindo que a esperança se concretize.