Título: Entre o fracasso e a inércia
Autor: Rodrigo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 21/01/2006, Idéias & Livros, p. 1

Da instabilidade política à estabilidade das desigualdades sociais, resulta um país de desejos, mas sem horizontes, afirma Wanderley Guilherme dos Santos em novo livro

O horizonte do desejo: instabilidade, fracasso coletivo e inércia social Wanderley Guilherme dos Santos FGV, 204 páginas, R$ 26

Perguntas que só atormentam de fato os aflitos, os incomodados e os intelectuais mais inquietos: como o Brasil, sustentando uma crônica e renitente instabilidade institucional, pôde ter experimentado formidáveis transformações ao longo do século 20 e, simultaneamente, fracassado na dissolução de atributos perversos que o estigmatizam? Por quais razões se renova nosso amplo cardápio de desigualdades, levando o país a uma paradoxal conjunção entre progresso material, mudanças difusas e um estado social desalentador? Por que a espantosa estabilidade dos desequilíbrios cumulativos na distribuição dos bens não é capaz de, nestes trôpegos trópicos, promover fraturas, rupturas, desmanches indeléveis? Como entender a existência pacífica de um país que se moderniza materialmente e oferece tratamento brutal ao enorme exército de pobres e miseráveis?

Tais questões conduzem a uma ¿interrogação nacional¿, sobre a qual se debruça o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, no livro Horizonte do desejo, que chega esta semana às livrarias. Ex-colunista do Idéias (abandonou os jornais para dedicar-se às próprias leituras), ele já não tem mais a idade da aflição, mas há tempos alcançou experiência e sabedoria suficientes para transformar o incômodo e a inquietude intelectual em compulsão saudável da boa teoria.

Não à toa o cientista político Sérgio Abranches já o definiu como um ¿artista da teoria¿ ¿ não um exegeta barroco dedicado a descrever conceitos obscuros. Trata-se de uma teoria que resulta de uma démarche exaustiva. Foi assim ao oferecer ao país uma obra como O cálculo do conflito. Ou ao demonstrar que um famoso romancista brasileiro (José de Alencar) era um teórico da democracia representativa digno de John Stuart Mill. ¿A interrogação nacional estará satisfeita se descobrir por que as conseqüências difusas das mudanças institucionais produtivas têm sido impotentes para desestabilizar as desigualdades cumulativas¿, indica.

Ao buscar entender como funciona o aparente conformismo nacional e identificar onde o Brasil se encontra na cadeia histórica que o separa da profecia sobre o futuro e a realidade, o autor refuta teses vigentes e equívocos explicativos capazes de turvar as análises sobre o país. Entre tais idéias, a premissa de que os desequilíbrios sociais são o motor causal da instabilidade política ou de que há um desencanto com a democracia, fruto de uma decadência que tornaria oportuna a sugestão de reformas de grande magnitude. O Brasil padece hoje, alguns já têm alertado, de um reformismo exacerbado; qualquer mal revelado na política requer uma grande reforma ou mesmo a substituição das instituições. Engano.

Segundo Wanderley Guilherme, ¿as faces da enigmática Eva brasileira confundem¿, referindo-se ao paradoxo de convivência entre progresso e injustiça. Ele sublinha as duas principais transformações experimentadas pelo Brasil: uma mudança material, conseqüência do espetacular desempenho da economia nos primeiros 80 anos do século passado, e outra cívica, decorrente da ¿megaconversão eleitoral¿ durante a segunda metade do mesmo século ¿ uma inclusão ¿em escala sem paralelo na história dos sistemas políticos representativos¿. Verificaram-se ainda avanços institucionais, como o maior controle sobre o Poder Legislativo, e crescentes taxas de alfabetização, urbanização e industrialização.

Em contrapartida, lembra o autor, ¿o fundamental problema da universalização dos direitos constitucionais e a erradicação da miséria absoluta, há muito resolvidos pelas nações do Primeiro Mundo, ainda estão pendentes¿. Somam-se a tais pendências erráticas e profundas desigualdades e injustiças, capazes de alimentar preconceitos e distanciamentos de classes, cores, gêneros e regiões. Um suculento cardápio de mazelas. ¿O vagar nacional é assustador e sem competidores entre os países economicamente maduros¿, escreve Wanderley Guilherme.

Injusto e, mais do que pobre, parcialmente miserável, o Brasil recebeu de cientistas sociais as mais diversas explicações para essa convivência pacífica entre realidades tão díspares: controle político pelas elites, espoliação internacional, clientelismo, paternalismo, passividade da cidadania, tradição ibérica, alma conformista ou uma miscigenação que teria resultado em indolência são alguns dos argumentos explicativos que, para Wanderley Guilherme, constituem hipóteses banais. Ele aponta, porém, a ¿total negligência¿, nas análises, da dimensão racional das ações humanas.

Para entendê-la, convém sublinhar conceitos a que ele recorre, como ¿privação relativa¿, a fim de se compreender, enfim, o horizonte do desejo nacional. A privação relativa, afirma o autor, ¿instala-se precisamente nos interstícios que se expandem ou contraem entre aquilo de que se dispõe e aquilo de que se ambiciona dispor, entre o real cotidiano e o horizonte do desejo¿. Em outras palavras, quanto mais modesto o consumo real, maior o hiato entre o que alguém possui e o horizonte de seu desejo.

A privação relativa refere-se, portanto, ao sentimento hospedado no hiato entre a condição de vida percebida pelo indivíduo e aquela que ele considera que deveria ter ¿ por mérito ou por compensação social. ¿Em qualquer momento do tempo, e seja qual for o nível de riqueza ¿ material ou simbólica ¿ cada indivíduo estará sempre atrasado em relação a si próprio, isto é, a seus desejos emergentes¿.

Desequilíbrios muito musculosos levam a um relativo imobilismo da sociedade ¿ uma inércia social, que age ¿como poderoso vetor de estabilidade na rotina das interações sociais¿. Para ele, ¿não tem sido explorada a possibilidade de que a putativa alienação das massas, cativas em seu exaustivo papel de fábrica de representações, derive de (...) estratégia de sobrevivência em um contexto de constitucionalidade precária¿. Cabe aqui ressaltar os dois tipos de instabilidades discutidos pelo autor: as perdulárias e as produtivas. As primeiras só produzem desperdício. Resultam em inutilidade ou frustração. Exemplo é o intervalo de tempo que vai do suicídio de Getúlio à posse de JK. Em outras palavras, nada se produziu ali de positivo, material ou simbolicamente. No outro extremo, ¿a instabilidade criada pelo buscapé Collor de Mello¿, que ¿impulsionou uma série de movimentos de natureza institucional bastante produtivos¿. O problema, alerta Wanderley Guilherme, é que, afora as instabilidades de grande magnitude, como as mencionadas acima, o ¿burburinho do cotidiano¿ está marcado por elevada taxa de incerteza, estimulando as pessoas a uma atitude de ¿aversão ao risco¿.

E risco, aqui, tem nomes graves: desemprego prolongado, afastamento do processo produtivo, violência institucional e marginalização. Do custo do fracasso e da falta de organização, insiste o autor, resulta a apatia característica da sociedade brasileira. ¿Os partidos não são procurados, nem os políticos. E a participação sindical, embora crescente, ainda é muito reduzida. Há evidente descompasso entre a magnitude das carências sociais e o empenho da sociedade em resolvê-las. Não sobra tempo para isso, visto a alocação prioritária do tempo e recursos dos indivíduos na solução de urgentes problemas pessoais e familiares¿.

Do cálculo entre o real e a convicção de que se conquistarão certas aspirações, resulta uma média insignificante. Por essa razão, nossa desigualdade ¿tem o amparo da indiferença¿, e assim a vida segue sob a marca da convivência pacífica com a miséria cotidiana, material e cívica, sem que se gerem ameaças. O custo do fracasso das ações coletivas pode ser bastante elevado, diz ele ¿ com deterioração do status quo dos participantes, ¿circunstância suficientemente ameaçadora para deprimir o ânimo reivindicante dos mais necessitados¿.

¿Aqui¿, escreve Wanderley Guilherme, ¿o horizonte do desejo é puro desejo, sem horizonte¿. Eis a nefasta estabilidade brasileira, que impõe vingança social aos que ousam escalar a hierarquia e são malsucedidos. Uma nação situada entre o fracasso e a inércia.