Título: Sem medo da esquerda
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Fonte: Jornal do Brasil, 18/01/2006, Opinião, p. A10
O desembarque no poder da chilena Michelle Bachelet e do boliviano Evo Morales (a primeira, eleita há três dias; o segundo, à espera da posse no domingo) simbolizam muito mais do que as aspirações de mudança constatadas entre eleitores de seus respectivos países. Constituem exemplos do intenso processo de mudança política verificado nos últimos anos na América do Sul, do qual o notável movimento para a esquerda - dentro da normalidade democrática e institucional - revela-se o feito mais evidente. (Embora a Bolívia tenha atravessado mares turbulentos até atingir uma momentânea paz social). A eles se integram Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, Néstor Kirchner, na Argentina, Tabaré Vázquez, no Uruguai, e Hugo Chávez, na Venezuela. Ao grupo poderá juntar-se o prefeito da Cidade do México, Manuel López. De tais líderes, felizmente, apenas o último parece conduzido pela traiçoeira e sedutora armadilha da fanfarronice. Os demais têm comprovado que, embora as cassandras habituais teimem em acentuar o contrário, há na América do Sul um ambiente muito mais propício ao compromisso com a boa governança do que a rompantes promotores de rupturas que o perfil ideológico dos atuais presidentes poderia sugerir. As exceções, insista-se, resumem-se ao pensamento rupestre de Chávez - conjugado, no norte do Equador, ao cubano Fidel Castro. A esquerda latino-americana no poder, contudo, mesmo com tonalidades políticas diversas, apresenta um perfil capaz de emitir sinais de insatisfação com os rumos do jogo internacional, mas revela sensatez suficiente para rejeitar vôos e gestos desnecessariamente arriscados.
Michelle Bachelet e Evo Morales precisam provar, no entanto, que a longo prazo essa esquerda tem talento não apenas para ser eleita mas também para governar.
Recorde de votação no país e líder do Movimento ao Socialismo (MAS), partido fundado em 1999 sobre as bases dos sindicatos de cocaleiros, Morales chega ao poder para dar voz a uma população historicamente silenciada pelas oligarquias. Por essa mesma razão, sobre ele a maioria oprimida deposita esperança demasiada para não ser atendida rapidamente. Michelle, por outro lado, chega ao Palácio de la Moneda como símbolo da modernização da sociedade chilena, marco da redemocratização daquele país e evidência prática de como o Chile vem superando as fraturas deixadas pelo regime do ditador Augusto Pinochet. Eventuais ilusões de ambos esbarrarão nos limites impostos pela vida real.
O Brasil é prova da distância entre as bravatas vãs dos tempos de oposição e a sensatez quando se desembarca no poder. Conduzido de maneira bem-sucedida por políticas liberais, o Chile também confirma a tese. Sério candidato a entrar para o clube do Primeiro Mundo, o país tem o mérito de ser governado por uma aliança de centro-esquerda com pertinácia suficiente para prosseguir a trilha das reformas executadas no período Pinochet. Essa responsabilidade é essencial para que os sul-americanos consigam, por exemplo, aproveitar melhor a abundância de liquidez nos mercados internacionais e, em especial, a absorção, pela China e outras economias asiáticas em rápido crescimento.
Em síntese, o grande acerto sul-americano será acertar o passo na eliminação da tendência histórica da região, em que muitos caudilhos se agarraram ao poder graças à combinação de messianismo, demagogia e corrupção. Levaram a esdrúxulas combinações ideológicas. Da direita à esquerda. Do peronismo ao chavismo. Se da esquerda exige-se responsabilidade, sobre a direita há uma exigência: deixar de ter medo de a esquerda ascender ao poder.