O Estado de S. Paulo, n. 47888, 27/11/2024. Política, p. A10

Manutenção de Moraes em inquérito cria risco de anulação, dizem juristas
Hugo Henud

 

 

 

As investigações da Polícia Federal (PF) que relatam uma trama para matar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), juntamente com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o vice-presidente Geraldo Alckmin, reforçam entre juristas uma posição que vem ganhando corpo há muito tempo: o ministro do STF deveria se declarar impedido de julgar os casos envolvendo a tentativa de golpe de Estado articulada por apoiadores e integrantes do governo Jair Bolsonaro.

Juristas ouvidos pelo Estadão afirmam que os fatos revelados pela PF são graves e exigem apuração rigorosa. Como Moraes era um alvo direto dos golpistas, seria ideal, na visão deles, que ele se declarasse impedido de continuar na condução do inquérito na Corte. Segundo esses especialistas, essa medida pode evitar que brechas processuais, que poderiam levar à anulação do caso, sejam exploradas pelas defesas dos envolvidos. O afastamento também fortaleceria a legitimidade do Supremo, especialmente diante do atual contexto de crise de confiança que a instituição enfrenta.

Procurado via assessoria e por meio do STF, Moraes não se manifestou. Em fevereiro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente da Corte, rejeitou um pedido da defesa de Bolsonaro pelo impedimento de Moraes. “Para essa finalidade, não são suficientes as alegações genéricas e subjetivas, destituídas de embasamento jurídico”, disse Barroso.

Na última semana, o decano do Supremo, ministro Gilmar Mendes, também manifestou apoio à permanência de Moraes na condução dos inquéritos nos quais é apontado como vítima. Mendes afirmou que “seria um absurdo” e que “não faz sentido” afastar Moraes do inquérito que investiga a tentativa de golpe de Estado.

Barroso, presidente do STF, e Gilmar Mendes, decano da Corte, saíram em defesa de Moraes

O professor de Direito Penal da USP Gustavo Badaró avalia que, embora o caso esteja no Supremo – última instância do Judiciário, o que dificulta a anulação de atos processuais relevantes –, pedidos de revisão podem ser bem-sucedidos, especialmente se for identificado um possível vício de competência relacionado a Moraes – situação em que o caso é conduzido por um juiz que não seria o responsável legal para julgá-lo. O jurista lembra que, na Lava Jato, o STF julgou casos da operação e, posteriormente, revisou seu entendimento, alterando suas próprias decisões. “Se acolhido (um pedido de revisão), anularia todos os dados processuais praticados por ele. Mas pode estar existindo um vício de competência”, explica Badaró. Uma das brechas apontadas pelo professor diz respeito à competência em casos atribuídos à relatoria de Moraes, considerando que o inquérito que apura o suposto plano de golpe de Estado não é o único no qual Bolsonaro aparece como investigado com o ministro como relator.

MILÍCIAS DIGITAIS. No comando do inquérito das fake news, instaurado em 2019 pelo próprio STF, Moraes também centraliza a condução de outras investigações, incluindo as relacionadas aos atos antidemocráticos de 2021, às milícias digitais e aos ataques de 8 de janeiro. Badaró cita a teoria da aparência de imparcialidade, adotada pela Corte Europeia de Direitos Humanos para avaliar questionamentos sobre a neutralidade de magistrados. “Não basta que o juiz seja imparcial; ele também deve, aos olhos da sociedade, parecer imparcial, para que a sociedade acredite na legitimidade do julgamento”, explica.

Na análise do jurista e professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) Gustavo

“Não basta que o juiz seja imparcial; ele também deve, aos olhos da sociedade, parecer imparcial, para que a sociedade acredite na legitimidade do julgamento” Gustavo Badaró

Professor de Direito Penal da USP

Sampaio, as condutas reveladas indicam que os investigados tinham a intenção de perpetrar crimes contra o estado democrático de direito, por meio de ações direcionadas especialmente contra Moraes – uma circunstância que, na avaliação de Sampaio, deveria levar o ministro a considerar a possibilidade de se declarar impedido de julgar o caso. Esse mecanismo é aplicado quando há indícios de que o magistrado possua interesse pessoal ou manifeste parcialidade no caso, comprometendo sua isenção.

‘PRUDÊNCIA’, “Neste caso específico, me parece que é de toda prudência que o ministro se afaste da relatoria, para que o tribunal não fique sob suspeita”, pontua. Ele acrescenta que, caso Moraes se declare impedido, a relatoria será redistribuída por sorteio entre os ministros do Supremo.

O jurista e ex-desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Wálter Maierovitch concorda. Ele considera contraditória a postura de Moraes ao permanecer no caso. “Ora, se eles defenderam isso, é uma hipocrisia virarem agora as costas. E uma contradição. Nós estamos numa situação patética. Não estou atacando a pessoa do Alexandre de Moraes. Sou professor de processo penal e isso é estarrecedor para quem atua como operador dessa área do direito processual, constitucional e penal”, pontua.

CORTE ‘PERSONALIZADA’ .O criminalista e coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Marcelo Crespo, destaca que Moraes já deveria ter se declarado impedido anteriormente, considerando o histórico de inquéritos relacionados ao mesmo grupo de investigados. “A Corte está muito personalizada na figura de Moraes, então ele se afastar seria um resguardo para o próprio Supremo, fortalecendo a imagem da instituição”, ressalta.

O criminalista e professor de Direito Penal da PUC-RS Aury Lopes Jr. concorda. “Seria salutar que o ministro que participou da investigação se declarasse suspeito (até por foro íntimo), pois é evidente o imenso prejuízo que decorre dos pré-juízos que ele já realizou. A contaminação, no sentido de ausência de imparcialidade por já ter a imagem mental preestabelecida, é inegável. Não existe uma ‘blindagem’ cognitiva que permita um posterior julgamento imparcial”, diz. •