Título: El Alto, onde mora o poder
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 18/01/2006, Internacional, p. A8

O epicentro de todas as crises institucionais na história recente da Bolívia não fica, como se imaginaria, no Palácio Quemado, sede do governo. Foi essa cidade-dormitório, onde vivem 800 mil pessoas ¿ em sua maioria indígenas aymaras ¿ a origem das manifestações que derrubaram Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, e seu sucessor, Carlos Mesa, em 2005. Também desse entorno pobre da capital, que pode ser visto de muitos pontos de La Paz, saiu o movimento que conduziu um índio à posse do próximo domingo. As vielas cheias de barraquinhas ¿ que vendem desde comida a papel higiênico e sabonete, além de chá de coca ¿ em El Alto têm uma história movida por mobilizações sociais que mostraram, nos últimos anos, poder de fogo maior que o do Estado. Desde que o índio Tupak Katari liderou uma guerra contra os colonizadores espanhóis, cercando La Paz e impedindo a entrada de alimentos para a população urbana, em 1781, a região, a 4.000 metros de altura e hoje cortada pelo aeroporto internacional, irradia protestos como os de 2003, também marcados pelo resgate da tática histórica de Katari. A última conquista do efeito ¿altenho¿ é a mais importante: a eleição de Evo Morales.

A cidade está 30 minutos, de carro, do centro de La Paz. Os táxis cobram 40 bolivianos (R$ 11,50), muito se comparado com as vans, condução básica da capital, que fazem o mesmo trajeto por 2 bolivianos. Nesse caso, o preço baixo é contrapartida para agüentar muitas paradas e os gritos dos cobradores com o trajeto ¿ como no Rio. As vans entopem as principais avenidas de El Alto.

¿ Evo vem da movimentação que começa invisível e se caracteriza pelo reconhecimento e expansão de uma identidade indígena. Por muito tempo, se votou na elite branca, por se acreditar que o presidente não podia ser um índio como a maioria. Agora há um cenário novo ¿ afirma ao JB , em seu escritório, o sociólogo Pablo Mamani, um indígena que dirige o departamento instalado em um dos dois prédios da Universidade Autônoma de El Alto. O centro foi construído pelos próprios altenhos, em 2000, depois que estudantes, filhos de mineiros, exigiram que a universidade se separasse da Universidade de San Andrés, em La Paz. Queriam cursos melhores que os técnicos, vistos como de segunda qualidade, como mecânica, por exemplo. Hoje, o corpo docente se alegra por ter quadros-negros, giz e até televisão em algumas das salas.

¿ Houve um processo de identificação com Evo, mesmo que em volta dele haja uma mistura de brancos, mestiços e intelectuais de esquerda, como o vice-presidente Álvaro Garcia Linera ¿ completa Mamani.

O resultado disso foi o 18 de dezembro, quando mais de 50% dos bolivianos optaram pelo MAS (Movimento ao Socialismo) ¿ acrescenta, destacando que dos pouco mais de 300 mil eleitores de El Alto, 260 mil votaram em Morales.

Hoje, segundo o censo de 2002, 62% da população de La Paz, cidade de classe média onde Morales teve alto índice de votação, já se identificam como índios. Para Mamani, o quadro desmistifica a imagem dos povos indígenas, por muito tempo considerados marginais e restritos às áreas rurais:

¿ Aqui essa versão se rompe. Por isso, este é um momento histórico. Os indígenas estão aí, fazendo economia, política, têm carros de modelo 4x4, estão nas universidades e, agora, no governo.

El Alto é uma região essencialmente indígena, em que cerca de 80% da população é aymara, como Morales. A cidade pobre foi construída no final dos anos 80, com a migração de mineiros ¿ muitos passaram a trabalhar em empresas multinacionais que chegaram com a consolidação da economia de mercado no país ¿ e de trabalhadores rurais, que já não encontravam no campo as mesmas oportunidades. O resultado dessa mistura é uma organização municipal com dinâmica indígena, mas com forte apelo sindical, trazido pelos trabalhadores.

Assim, o governo é rotativo, divido entre as regiões Norte e Sul (acima e abaixo do aeroporto), lógica que também rege a liderança das associações de moradores dos cerca de 500 bairros distribuídos por encostas íngremes ocupadas desordenadamente por casebres de tijolo aparente. No entanto, a capacidade de mobilização é a das centrais de trabalhadores.