Título: Sorte lida nas folhas da coca
Autor: Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 21/01/2006, Internacional, p. A7

Em ritual no palácio da vice-presidência, líderes de dezenas de tribos andinas apresentam apoio ao governo

LA PAZ - Na véspera da posse presidencial, rituais em homenagem ao próximo chefe de Estado, Evo Morales, e à Bolívia marcaram, ontem, o Primeiro Encontro de Autoridades Indígenas da América. A conferência ocorreu dentro do Palácio da Vice-presidência, no Centro de La Paz. O vice-presidente eleito, Álvaro Garcia Linera, classificou o momento como ''histórico'' e afirmou que o país será o ''centro do movimento indígena no continente''.

- Nunca poderia ter sonhado com este dia. É uma satisfação muito grande reunir autoridades e lideranças nativas - afirmou, emocionado, em entrevista ao JB , após encerrar o discurso.

Para Linera, a experiência que se passa no país hoje é ''inédita'' e conserta uma distorção de 500 anos. O político acredita que é hora de articular forças para governar, ''juntar o poncho e a gravata'', declara, referindo-se à vestimenta indígena:

- A possibilidade de um Estado multicultural está aqui. A atenção do mundo está na Bolívia, no processo de construção de uma nova democracia, pós-capitalista, pós-neoliberalismo. O movimento indígena emerge agora, sai de baixo da terra para dizer: hoje temos o direito de governar, não só um país, mas um continente - afirma, empolgando a platéia formada por índios do Equador, Peru, Venezuela, Chile, entre outros países. - O movimento tem um projeto de sociedade, de nova civilização, e uma estratégia política. O que antes aparecia como tradição, como folclore, o que antes era considerado atraso, agora é futuro. Índios no poder, esse é o horizonte da América Latina - acrescenta.

O fórum, que durou o dia inteiro, estava voltado para a troca de experiências e a afirmação do processo político do movimento indígena latino. Coube ao aymara Mallku-Rosseto Chino, do Conselho Nacional de Aymaras e Quechuas de Quellasuyu, tirar a sorte do encontro:

- Se as folhas de coca caírem viradas para baixo teremos muita sorte - ressaltava, enquanto as joga no saguão da vice-presidência. Ao ver que quatro das cinco que lançara haviam caído viradas para baixo, comemorou o sinal positivo:

- A coca é uma espécie de livro, de Bíblia, para sabermos os significados. Diz se uma pessoa é boa ou má, se teremos sorte ou azar num encontro - explica cuidadosamente, o índio de 35 anos, com trajes coloridos tradicionais.

A folha mereceu destaque no evento. Estavam por toda parte: na mesa que reuniu as autoridades, nas bolsas que os indígenas carregavam e de onde as tiravam para mastigar, ou ''bolear'', como se diz aqui.

Para Sixto Umpiri Apumalco, 38 anos, líder de Potosí, será fundamental a participação das organizações indígenas no governo do Movimento ao Socialismo (MAS):

- O governo é indígena. E por sentimos que estamos no poder, vamos ajudar - diz a autoridade espiritual que, na abertura da cerimônia, cantou emocionada, silenciando a platéia. Apumalco revelou que o movimento nativo pretende mudar o nome do país. Sem adiantar qual seria, afirmou que a discussão terá início em julho, quando acontecerão as eleições para a Assembléia Constituinte. A nova Constituição é uma demanda antiga dos índios, que se sentem excluídos na atual Carta.

Alheia à cerimônia, Basilia Chambi Flores, uma aymara de 15 anos que brincava com o sobrinho sentada no chão do salão, estava à vontade num prédio ao qual poucas vezes antes os índios tiveram acesso. Sem falar espanhol, disse por meio de um intérprete que estava feliz com o novo presidente:

- Vai ser muito bom para o povo.

Já o uruguaio Enrique Héctor, 53 anos, enrolado em uma bandeira indígena, em nada lembra um índio:

-Não está na aparência, mas na essência - diz o senhor branco, de olhos azuis, explicando porque fundou a Associação de Descendentes da Nação Charrua. - Tenho bisavó e tataravó índios, está no DNA.