O Estado de S. Paulo, n. 47892, 01/12/2024. Política, p. A8
Parlamentares orbitam trama de golpe em relatório final da PF
Heitor Mazzoco
Hugo Henud
O relatório final da Polícia Federal (PF) que aponta uma tentativa de golpe de Estado no Brasil cita diversos deputados federais e senadores aliados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que teriam algum tipo de participação no movimento antidemocrático. Figuram no documento, por exemplo, Marcos do Val (Podemos-ES), Carla Zambelli (PL-SP) e Alexandre Ramagem (PL-RJ). Dos parlamentares citados no relatório e na reportagem, apenas Ramagem foi indiciado por abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado e organização criminosa.
O documento com 884 páginas foi enviado ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que retirou o sigilo e o encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) na última terça-feira. O Estadão procurou os citados, diretamente ou por meio de assessores.
Ramagem afirmou na terçafeira, em sua rede social, não haver crimes no que pontuou a investigação, mas “só narrativas para perseguição”. “Narrativas e invenção de crimes. Criminalizam quem age dentro da lei. Já abusos se tornaram parte do sistema”, disse.
O deputado federal Filipe Barros (PL-PR) afirmou que participou de uma reunião para atualizar autoridades sobre tramitação da PEC do voto auditável, de que era relator. “Qualquer comentário além disso não passa de mera ilação.” O senador do Val disse que participar de reunião não é crime. Apenas o Tenente Portela não foi encontrado pela reportagem.
Outros parlamentares também são mencionados no relatório da PF, mas de forma secundária e sem grande relevância, aparecendo apenas como parte da contextualização dos fatos, sem papel identificado na empreitada investigada. Entre eles estão o senador Eduardo Girão (Novo-CE) e os deputados Eduardo Pazuello (PL-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
Citado 17 vezes no relatório, o senador Marcos do Val ganhou um capítulo à parte intitulado “Das Ações do senador Marcos do Val”, que detalha seu envolvimento na suposta trama golpista. O documento descreve diversos momentos em que o senador esteve ligado aos eventos investigados, incluindo uma reunião realizada no dia 8 de dezembro de 2022, no Palácio da Alvorada, em Brasília, com o então presidente Bolsonaro e o ex-deputado federal Daniel Silveira.
PERSUASÃO. De acordo com as apurações, Bolsonaro e Silveira tentaram persuadir do Val a gravar clandestinamente o ministro Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O plano visava gravar declarações de Moraes que pudessem sugerir supostas ações inconstitucionais, enfraquecendo sua credibilidade e criando justificativas para medidas excepcionais, como a decretação de um Estado de Defesa ou uma intervenção federal, com o objetivo de impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva e garantir a permanência de Bolsonaro no poder.
As investigações também indicaram que Marcos do Val adotou estratégias para dificultar o andamento das apurações. O senador chegou a revelar publicamente o plano de gravar Moraes, alegando que o fez para “proteger a democracia”. No entanto, em mensagens trocadas com Carla Zambelli, do Val admitiu que suas declarações faziam parte de uma estratégia calculada para atrair a atenção da mídia e impulsionar a criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Em uma troca de mensagens com Zambelli, o senador celebra
a repercussão de suas declarações, afirmando: “Bom, acho que eu consegui chamar a atenção da imprensa, né? Agora ‘vamo’ pra CPI.” Na conversa, do Val compartilha uma lista das matérias publicadas na imprensa “em um único dia” sobre as informações que havia revelado.
Ao Estadão na última quarta-feira, Marcos do Val afirmou que não partiu de Bolsonaro a ideia de gravar Moraes, mas de Silveira. “Tudo fumaça. Nada vai para frente. No dia da reunião, que não é crime se reunir, o Silveira veio com essa ideia.
“Tudo fumaça. Nada vai para frente. No dia da reunião, que não é crime se reunir, o Silveira veio com essa ideia. O Bolsonaro me olhou na mesma hora (sendo contra)”
Marcos do Val
Senador (Podemos-ES) , ao defender seu aliado das imputações do inquérito
O Bolsonaro me olhou na mesma hora (sendo contra)”. Toda hora aparecia gente com ideias do tipo. Nada partiu de Bolsonaro, posso te garantir”, afirmou. Do Val diz ser perseguido, como o ex-presidente.
PEDIDO. Em março deste ano, o Estadão mostrou que o ex-comandante da Aeronáutica Baptista Junior rechaçou pressão feita por Carla Zambelli para que não “deixasse Bolsonaro na mão” e anuísse com o intento de golpe. À PF, ele afirmou que não aceitaria o pedido. “Deputada, entendi o que a senhora
está falando e não admito que a senhora proponha qualquer ilegalidade.” À época, a defesa de Zambelli afirmou que nunca fez pedido ilegal, não se recorda do fato e “se, porventura, pediu acolhimento, o fez por causa da derrota nas eleições”.
O ex-vice-presidente de Jair Bolsonaro, senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), é citado em prints de uma conversa entre o tenente-coronel Sérgio Cavaliere – identificado pela PF como integrante do “núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral” – e Mauro Cid, ocorrida em 4 de janeiro de 2023.
Segundo as mensagens, Cavaliere compartilhou informações atribuídas a um interlocutor identificado como “Riva”, que relatou que Mourão teria negociado com outros generais a “saída do 01”, uma referência à renúncia ou ao afastamento de Bolsonaro da Presidência da República. Caso Bolsonaro deixasse o cargo, Mourão assumiria a Presidência.
Ainda na conversa, “Riva” afirma que os militares teriam rasgado um documento assinado por Bolsonaro, possivelmente relacionado ao decreto de golpe de Estado. Ele menciona: “Rasgaram o documento que o 01 assinou”, indicando que houve resistência dentro das Forças Armadas à tentativa de implementar a medida.
DESINFORMAÇÃO. O relatório coloca o deputado federal Alexandre Ramagem, que ocupava o cargo de diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em 2022, como uma figura central nas ações para deslegitimar as instituições democráticas e o processo eleitoral. Citado 67 vezes, Ramagem é associado à produção de relatórios ilícitos, à disseminação de desinformação para subsidiar os ataques de Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral e ao Judiciário.
De acordo com a investigação, Ramagem utilizou a estrutura da Abin para produzir documentos que alimentaram ataques contra as urnas eletrônicas, além de ministros do STF, como Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Um dos principais materiais identificados pelos investigadores foi o arquivo “Presidente TSE informa.docx”, que antecedeu a live de Bolsonaro, em 29 de julho de 2021, na qual o então presidente apresentou alegações sobre fraudes no sistema eleitoral.
Ramagem foi o único parlamentar indiciado pela PF: neste ano, candidatou-se a prefeito
Acusado Ramagem, ex-candidato à prefeitura do Rio, é único parlamentar indiciado pela PF
do Rio de Janeiro, mas foi derrotado. Ramagem também é apontado como peça central na disseminação de notícias falsas, incluindo alegações de fraudes nas eleições de 2018. A investigação revela que o ex-diretor da Abin criou grupos técnicos para investigar supostas falhas nas urnas eletrônicas e fornecer dados que embasassem os ataques de Bolsonaro e seus aliados.
LIVE. O deputado Filipe Barros é citado no relatório da PF por propagar mentiras sobre as urnas eletrônicas. De acordo com a PF, ele participou de uma apresentação em julho de 2022 com a presença do então presidente Bolsonaro para atacar o sistema eleitoral brasileiro.
“Em sua fala, o deputado federal, novamente, utiliza informações falsas relativas à invasão do sistema administrativo do TSE para alegar uma possível vulnerabilidade nas urnas eletrônicas, que possibilitaria fraudar as eleições, repetindo o conteúdo disseminado na live realizada em 29 de julho de 2021, objeto de inquérito pela Polícia Federal, que comprovou a autoria e participação na preparação e difusão de informações sabidamente falsas pelos investigados”, diz trecho do documento.
A referida live foi realizada por Bolsonaro em julho de 2021 com ataques às urnas eletrônicas, o que se tornou alvo de inquérito no STF. Bolsonaro disse diversas vezes que até mesmo a eleição que venceu, em 2018, havia sido alvo de fraude. O então presidente afirmava ter tido mais votos do que os registrados na ocasião em que venceu Fernando Haddad (PT).