Título: O pastor desce a montanha
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 22/01/2006, Internacional, p. A9,10

Filho de pequenos agricultores, ex-pastor de lhamas e plantador de coca, novo presidente superou barreira histórica

Antes de Evo Morales, a cadeira presidencial na Bolívia já havia sido ocupada por 65 presidentes, entre eles dois venezuelanos, Simón Bolívar e Antonio José de Sucre. Eram militares, advogados, filósofos, economistas e até historiadores. Todos brancos. Índios como o novo presidente só haviam chegado ao poder uma vez, e assim mesmo não o tocaram. Em 1934, Franz Tamayo, um poeta de origem aymara - educado na França - ganhou as eleições mas não chegou a assumir. Um golpe militar, em plena Guerra do Chaco (com o Paraguai) alistou à força todos os índios no Exército. A maioria morreu sem saber pelo que lutava.

Morales sabe que percorreu um longo caminho até o Palácio Quemado. E é da trajetória que se pode extrair a relevância obtida por esse aymara nascido em 26 de outubro de 1959, na comunidade de Isallavi, na região mineira de Orinoca, 400 km ao Sul de La Paz. Era um entre sete irmãos, dos quais apenas ele e mais dois, Hugo e Esther, sobreviveram às dificuldades da pobreza e da desnutrição. Os pais, Dionísio e Maria, eram agricultores. Enquanto cuidavam da plantação, as crianças tratavam das lhamas.

Desde cedo, o pequeno Evo gostava de ouvir o rádio. Na comunidade não havia tevê ou jornais. As terras não pertenciam aos Morales - reflexo do regime republicano instaurado em 1825 depois de quatro séculos de domínio espanhol. Na troca de poder, os antepassados aymaras e quechuas, que lutaram contra a exploração colonial entre os séculos XVI e XVII, tinham sido privados de tudo. Desde cedo aprendeu que em seu país os brancos não consideravam índios como cidadãos nacionais - ''Vende-se pongo (índio escravo), com taquia (esterco)'', lia-se, na obra do escritor Pablo Enfermo, de 1906. Na Escola Seccional de Cavalilca, antes dos 10 anos, o futuro presidente já demonstrava a vocação de mobilizador. Quando um professor pediu que desenhasse um burro, pintou o animal de vermelho, amarelo e verde, as cores da bandeira. ''Fui ridicularizado o ano inteiro por isso'', recordou, em uma entrevista.

Como muitos garotos, Evo Morales descobriu no futebol uma paixão esportiva. Aos 14 anos, criou um time em Isallavi. Chamava-se Fraternidade. ''Eu era o capitão, o juiz, o delegado, o dono da equipe'', divertia-se. Vendia a lã das lhamas que ajudava a tosquiar junto com o pai para comprar as bolas e os uniformes. Acabou, aos 16 anos, sendo eleito ''diretor técnico da seleção de Oruro''.

A vocação política cresceu extra-campo à medida em que as condições na aldeia pioravam. Uma de suas recordações da infância é de ter caminhado por duas semanas pastoreando 50 lhamas, até achar milho suficiente para a os Morales e para a comunidade. Em outra passagem, lembra de matar a fome comendo frutas que os passageiros dos ônibus entre Cochabamba e Oruro jogavam fora pelas janelas.

Secas e geadas arruinaram as economias da família, que, no início dos anos 80 decidiu sair do altiplano para a região de floresta de Chapare. A intenção de Dionisio era plantar coca, cujo cultivo era mais fácil. Para o jovem, que sempre teve excelentes notas no colégio, a mudança permitiu avançar nos estudos até chegar à Universidade de Cochabamba. ''Queria ter sido jornalista. Eles sabem de tudo e estão sempre no centro dos problemas'', contou. Paralelamente, usava o esporte para desenvolver a vocação sindicalista, organizando torneios entre plantadores locais e mineiros de sua cidade. Fazia isso ao mesmo tempo em que lutava pela conscientização da classe contra a opressão econômica. Uma decisão marcada pelo assassinato de um companheiro de política, queimado vivo por jagunços a serviço do governo do general García Meza. Na mesma refrega, Morales saiu ferido e foi hospitalizado. O general assumira o poder com um golpe, em 1982, e transformou o país em um narcoestado. Opositores como o aymara eram caçados por esquadrões chefiados pelo fugitivo nazista Klaus Barbie.

Admirador de música andina, diz ter aprendido tarde a dançar e namorado pouco, por ''pensar demais em esportes''. O novo presidente é reservado sobre a vida pessoal. Tem uma filha, hoje com 11 anos, fruto de um relacionamento encerrado. A paternidade, comunicada quando já havia se tornado conhecido, no entanto, foi reconhecida apenas na Justiça. Sempre aparece em público só, mas sabe-se que tem uma companheira. ''Quando era mais jovem, compensava a solidão ouvindo música a todo volume no meu quarto. Hoje vejo como é importante ter alguém com quem compartilhar idéias'', admitiu. Admirador de Fidel Castro e da Nobel da Paz Rigoberta Menchu, espera mudar um país que ainda considera racista. ''Aqui, para um punhado há plata (dinheiro), para outros repressão''.