Título: A tragédia de um ciclo vicioso
Autor: Carlos Helí de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 24/01/2006, Caderno B, p. B8

Sandra Werneck ainda estava preparando o lançamento de Cazuza - O Tempo não pára (2004), a cinebiografia do cantor e compositor carioca, filme que atraiu mais de 3,5 milhões de espectadores ao cinemas brasileiros, quando foi cutucada pelo desejo de voltar às origens cinematográficas. Tomou forma então a idéia de investigar o que se passa nas cabeças das adolescentes de comunidades carentes - e na de seus respectivos parceiros e familiares - que engravidam muito antes de largarem as bonecas, resumidas no documentário As meninas. O filme, que tem estréia prevista para maio, fará sua estréia mundial na mostra Panorama do Festival de Berlim, a mais importante seção informativa da maratona berlinense, que acontece entre os dias 9 e 19 de fevereiro. - Naquela época, estávamos vivendo a euforia pelo governo Lula, do entusiasmo por projetos sociais, e me bateu aquela vontade de voltar ao documentário - gênero com o qual eu comecei minha carreira cinematográfica - e queria retornar aos temas sociais. Fiquei pensando em um assunto que fosse relevante neste nosso momento e cheguei à conclusão que falar sobre a gravidez precoce seria da maior importância e urgência - lembra Sandra, que não tem a menor idéia do impacto que seu novo longa poderá causar nas platéias alemãs.

- Não sei o que esperar de Berlim. Esse tipo de gravidez deve ser um tema discutido por eles, mas a realidade brasileira diferente é diferente da deles. Espero que, ao menos, Berlim dê visibilidade ao filme para que ele seja convidado por outros festivais importantes - reflete a cineasta de 54 anos, autora de títulos como Pena prisão (1984, sobre crianças marcinalizadas) e Damas da noite (1987, sobre prostituição infantil).

As meninas acompanha, ao longo de um ano, desde o início da gravidez ao parto, o cotidiano de quatro meninas entre 13 e 15 anos de idade que vivem em comunidades carentes do Rio de Janeiro. Evelin mora na Rocinha e descobre no dia de seu 13º aniversário que está grávida do namorado de 22 anos, que acaba de se desligar do tráfico. Moradora do Morro dos Macacos, na Zona Norte do Rio, Luana, de 15, é órfã de pai e vive em uma família dominada por mulheres. Edilene é de Engenheiro Pedreira, na Baixada Fluminense, e ficou grávida do namorado ao mesmo tempo em que sua mãe, Maria José. No mesmo município vive Joyce, de 15 anos, para quem a chegada de um bebê pôs um fim ao sonho de se entrar para a Marinha. As personagens foram selecionadas de universo de 110 candidatas, entrevistadas em diversos estados do país.

- Todas tinham casos parecidos. Decidimos concentrar nas candidatas do Rio, porque se filmássemos em cidades diferentes não teríamos como acompanhar o cotidiano de todas elas. Mas mesmo restringindo a geografia do filme, tivemos que apostar naquelas que achávamos que poderiam render como personagem ou como histórias interessantes - explica Sandra.

A diretora, que contou com a valiosa ajuda da assistente Gisela Câmara, diz que As meninas é um filme modesto, dono ''de um solo delicado e um subsolo trágico'':

- O que mais me interessa neste filme é a existência de um cico vicioso, que não pára. Essas meninas já nascem em famílias desestruturadas que, por sua vez, estão constituindo novas famílias desestruturadas e assim por diante. É um filme sobre a banalização da vida. As meninas da classe média fazem aborto, porque elas têm outros sonhos. Nas comunidades carentes, essas jovens mães não têm sonho algum, acreditam que seus bebês vão lhe conferir auto-estima dentro da comunidade - avalia a diretora, que ganhou popularidade dirigindo a comédia romântica Pequeno dicionário amoroso (1997).

Sandra diz que a ''esquizofrenia de fazer longas românticos acabou''. Motivada pela experiência de As meninas, a diretora pretende adaptar para o cinema o livro As meninas da esquina, de Eliane Trindade, sobre prostituição e abuso sexual.

- O ambiente é o mesmo, a periferia, a favela, como essas meninas lidam com o namorado e acabam engravidando. Acho bacana a idéia de um filme de ficção que pode aprofundar um tema que vivenciei por um ano - diz a diretora.