Título: Justiça é reconciliação
Autor: Arcebispo Desmond Tutu
Fonte: Jornal do Brasil, 22/01/2006, Internacional, p. A10

JOHANNESBURGO - Na África do Sul, na verdade, em todo o mundo, estamos acostumados a uma dieta rigorosa de Justiça como retaliação. Com o crescimento de crimes hediondos como estupro e abuso de crianças, hoje há freqüentes apelos ¿ apoiados por grande parte da população ¿ pelo retorno da pena capital. Felizmente, a Constituição da África do Sul considera a pena de morte ¿ que o país eliminou quando se livrou do apartheid ¿ inconstitucional. Infelizmente, em muitos lugares no mundo, parece que homens e mulheres não avançaram além da máxima bíblica do ¿olho por olho¿ em sua sede por retaliação. Na verdade, alguns países muçulmanos amputam as mãos de ladrões condenados em público. Mas esse provérbio bíblico foi invocado originalmente para impedir famílias em eternos conflitos sangrentos de perseguir os parentes inocentes da pessoa que tenha sido responsável por um massacre. ¿Olho por olho¿ sugere que o réu seja o único alvo, não os outros, cujo único crime foi o de ter vínculos de família.

Portanto, a expressão não foi criada para o que passou a significar: que uma matança seja paga com outra matança. Dada a brutalidade do período do apartheid, isso nunca teria funcionado na minha terra.

Alguns sul-africanos pedem por julgamentos no estilo do de Nuremberg, especialmente para os perpetradores de atrocidades para manter o bárbaro apartheid. Houve muita pressão para matar os acusados.

Mas fomos abençoados porque Nuremberg não era uma opção para nós. O julgamento aconteceu porque os aliados exigiram a rendição incondicional dos nazistas, e isso impôs a Justiça do vencedor.

No nosso caso, nem o governo do apartheid nem os movimentos de libertação poderiam vencer. Era uma encruzilhada militar. Mais ainda: em Nuremberg, os procuradores e juízes puderam arrumar as malas e deixar a Alemanha rumo a suas nações. Nós tínhamos que criar nossos lares neste país, nossa pátria, e aprender a viver uns com os outros.

Esses julgamentos provavelmente durariam uma eternidade, deixando feridas abertas. Teria sido difícil encontrar provas para as condenações. Todos sabemos como os burocratas podem se empenhar para destruir evidências.

Por isso, foi uma bênção nosso país ter decidido o caminho da Comissão para a Verdade e Reconciliação (TRC) ¿ oferecendo anistia em troca da verdade. Foi uma decisão baseada nos princípios de Justiça restauradora e do ubuntu (ideologia sul-africana que prega a ¿humanidade para com os outros¿).

Nas audiências da TRC, fomos expostos a detalhes grotescos das atrocidades cometidas para manter ou combater o regime do apartheid:

¿Nós oferecemos café com drogas, atiramos na sua cabeça e queimamos o corpo. Como leva de sete a oito horas para um corpo humano queimar, fizemos um churrasco ao lado dele, com cerveja e carne¿.

Quão baixo pode o homem afundar em nossa própria desumanidade!

A cada vez que essas histórias horríveis eram publicadas, tínhamos que lembrar que esses atos eram demoníacos, mas que cada um dos responsáveis continuava sendo um filho de Deus.

Um monstro não tem responsabilidade moral, por isso não pode ser culpado. O mais grave é que, ao considerar alguém um monstro, fechamos a porta para sua possível reabilitação. A Justiça restauradora e o ubuntu são baseados firmemente no reconhecimento da humanidade fundamental, até para o pior dos acusados.

Não podemos desistir de ninguém. Se fosse verdade que as pessoas não poderiam mudar, uma vez assassino sempre assassino, o processo da TRC teria sido impossível. Ele aconteceu porque acreditamos que mesmo o pior dos racistas podia mudar. E acho que não fizemos feio na África do Sul ¿ pelo menos é isso que o resto do mundo parece pensar da nossa transformação e da TRC.

O ¿olho por olho¿ nunca funcionará em comunidades em conflito. Uma represália leva à outra, numa espiral de sangue como a que vemos no Oriente Médio.

O tipo de Justiça praticada na África do Sul, que chamo de Justiça restauradora, não está, ao contrário da retaliação, preocupada com a punição. Está mais concentrada na cura das feridas. A agressão criou um hiato nas relações humanas, que precisa ser cicatrizado. A Justiça restauradora considera o acusado uma pessoa com noção de responsabilidade e de vergonha, que precisa ser reintegrado à comunidade. Não deve ser jogado ao ostracismo.

Há uma riqueza na sabedoria das tradições da sociedade africana. A Justiça era um assunto comunitário, e a harmonia social e a paz eram prezadas. Acreditava-se que uma pessoa era uma pessoa apenas quando cercada por outras, e que uma pessoa fragmentada precisava de apoio para se recompor. O que a agressão perturbou deveria ser restaurado, e o agressor e a vítima precisavam de ajuda para se reconciliarem.

A Justiça como retaliação muitas vezes ignora a vítima, e o sistema é normalmente impessoal e frio. A Justiça restauradora é esperançosa. Acredita que mesmo o pior agressor pode se tornar uma pessoa melhor.

Isso não quer dizer que sejamos tolerantes com crimes. Os acusados devem reconhecer a seriedade do que fizeram pelas sentenças que receberem. Mas é preciso haver esperança de que o agressor possa se tornar um membro útil para a sociedade, depois de pagar o que deve.

Quando agimos acreditando que alguém pode se superar, é melhor. Muitas vezes, eles ultrapassam nossas expectativas. (Project Syndicate)